A recente revelação de que a cantora Sia é autista aconteceu apenas dois anos após ela ser criticada e cancelada por dirigir um filme polêmico sobre a condição. Isso porque “Music” (2021), embora tenha chegado a receber duas indicações ao Globo de Ouro, foi um fracasso de crítica e público. Porém, eu me lembro que muitas críticas embasaram-se na ideia de que a artista não tinha uma consciência discursiva sobre o autismo.
Em outras palavras, o “lugar de fala” de Sia parecia limitado para um projeto tão pessoal sobre o tema. Então, como alguém que acompanhou a situação na época e também como uma seguidora que não se surpreende com esse diagnóstico, a situação toda me parece um convite ao não julgamento moral.
Na ocasião do lançamento da obra, Sia foi rechaçada por convidar a atriz neurotípica Maddie Ziegler para interpretar uma autista. Isso ocorreu quando poderia dar a oportunidade do protagonismo para alguém que realmente fosse autista. Claro que a função de um ator ou atriz se formata pela capacidade de se formatar em um papel que pode ou não ter a ver com as características pessoais dele. Porém, além de Maddie aparentemente não convencer na personagem, há o agravante de que alguém com mais estudo, laboratório ou vivência pessoal pode estar sem oportunidades de protagonizar um longa-metragem daquele porte.
Críticas, muitas críticas
Neste sentido, consigo entender as críticas. Também, compreendi o argumento de Sia de que o coração dela estava “no lugar certo” e que seria preciso assistir para julgar. Afinal, a sensibilidade que vem da criação artística nem sempre é fiel às experiências concretas, embora se inspire nelas. Assim, se a diretora errou no tom da condução da história e das personagens, isso pode se dever a uma série de problemas que não necessariamente tem a ver com má intenção. E geralmente não tem.
Segundo a filósofa Djamila Ribeiro no livro O que é lugar de fala?, o termo significa que, quando discorremos sobre um assunto, fazemos isso por meio de um lugar e de uma consciência social. Ou seja, “lugar de fala” não significa que não podemos falar sobre qual tema desejamos. Ao contrário, esse conceito evidencia que a Sia, por exemplo, discursa sobre um determinado lugar. Ou seja, ela tem uma posição de mulher, autista, branca e com diversas outras características que se interseccionam.
A questão é que, no senso comum, a ideia de lugar de fala parece se reduzir à noção de que você precisa ter uma ligação direta com tudo que fala. O que não é verdade e nem faria sentido. Isso, visto que ter sido diagnosticada com autismo não torna Sia mais apta a produzir conteúdo ou arte sobre a condição do que outros diretores e atores. Estes, mesmo neurotípicos, compreenderam de maneira mais empática a relação das próprias obras com o coletivo.
Enfim, o que me assusta nisso tudo é que, analisando as atitudes rígidas e pouco politizadas da Sia com o público ao reagir às críticas na ocasião do lançamento do filme, faz muito sentido vê-las sobre a lente de uma autista. E que não soube lidar com a frustração de fracasso com um projeto que, em tese, parecia talhado a transformar em arte percepções muito caras a ela.
Confesso que chorei ao ler a fala da cantora de que, por quase 50 anos, teve que forçosamente se moldar para parecer mais próxima à normatividade. Assim, espero que ela se recupere das muitas marcas que a camuflagem social traz a autistas adultos. No fundo, é isso que importa.