20/06 | 2 anos de Coletivamente

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Foi um prazer e uma honra participar da banca avaliadora do TCC da estudante de Letras Camila Paz (UfPel), com trabalho sobre “A mulher autista nos poemas de Milena Martins Moura“. Esta é provavelmente a primeira vez em uma universidade brasileira na qual uma banca desse tipo é formada apenas por professores autistas. Afinal, não há registros de outro momento assim em universidades brasileiras. Junto a mim, estavam os doutores Gustavo Ruckert e Aline de Andrade. Ao final, o TCC foi aprovado com uma unânime nota dez. Parabéns à Camila e que ela siga com suas descobertas. 

O trabalho “A mulher atista nos poemas de Milena Martins Moura” me chamou positivamente a atenção logo de cara. Isso porque percebi, já nos agradecimentos, o destaque à espiritualidade e à arte em seu caráter de entretenimento. Ou seja, como companhia. Isso indica uma maturidade e coragem de lidar com os próprios afetos, no sentido de processo de afetação, durante o trajeto da pesquisa.  Sei que afetos não se restringem aos sentimentos e às emoções, mas são partes indissociáveis do percurso de pesquisa. Ainda que, usualmente, pouco falados no que se refere a resultados desse esforço científico.

Partindo para a introdução, percebi que eu estava certa! Afinal, Camila caracteriza a pesquisa a partir da própria experiência do diagnóstico de autismo, que veio após as inquietações da adolescência comuns a muitas de nós. Além disso, ela define o percurso de aceitação do diagnóstico como  desafiador e não linear.

Vivências desafiadoras

É bonito o movimento que Camila faz de descrever a complexidade desse processo. Assim, ela mostra como as vivências autistas podem ser desafiadoras, para atividades do cotidiano, banais para os neurotípicos. Exemplos disso são as interações em sala de aula, influenciadas pelo tamanho dessas salas e a quantidade de pessoas. Ieso tudo carregado de intensidade e se misturando aos afetos de como lidar com o diagnóstico recente.

Então, considero importante ela descrever esse “período complexo e nebuloso”, da “excitação” “negação” e “revolta”. Assim como a quase desistência recorrente. É muito importante citar tudo isso, de forma a humanizar certos processos da produção do conhecimento. E é muito bonito ver a autora entrelaçar arte e ciência e a voz de uma mulher autista.

Nesse sentido, está mais do que justificada a obra de Milena Martins Moura para análise. Dessa forma, a pesquisadora observa as noções de exclusão e capacitismo, como elas aparecem nos poemas de Milena, no que se refere às mulheres autistas. Também é muito bonito que Camila se permita o processo de autoanálise, de identificação, em meio às interações com os três poemas selecionados para essa crítica literária.

A partir daí, Camila evoca o que há de concreto nas vivências dessas mulheres. Dessa forma, direciona o olhar para a transformação disso em linguagem. Também é legal, ver o ato de protagonismo  emergir da leitura, especialmente por vir de quem naturalizamos ver como o outro. Ou, ainda, “a outra do outro”, como às vezes, me permito observar.

Desmistificando estigmas

A pesquisadora, entäo, se propõe então a desmistificar estigmas, E, para embasar essa investigação, remete ao colonialismo, como ao notar, com Grada Kilomba, que nossas identidades são definidas por outros. E aí, o grande ganho da pesquisa, que é definir o autismo não apenas como objeto de análise. Mas, também, como parte do sujeito analisante. Assim, Camila abre os olhos para violências físicas e simbólicas em um contexto de desigualdade de oportunidades marcado pelo desinteresse (eu diria até desvalor) do público em relação à arte e à produção neurodivergentes. Então, SIM, lugares como a academia devem ser ocupados por essas pessoas e suas publicações. No mínimo, para diminuir a violência que impede a criação de arte e ciência valiosas e desrespeita a dignidade da vida, a uma forma de existência.

Depois disso, há uma interessante e necessária contextualização da autora Milena Martins Moura e a relação entre o trabalho dela e questões mais amplas do autismo no feminino. Tais como o histṍrico de estudos voltados a padrões observados em grupos do sexo masculino. Há uma frase muito forte aí, uma citação dos poemas, e é forte porque cai sobre os nossos corpos: “nascer errado é quase morte”. 

Então, Camila fala sobre autismo, capacitismo e estereótipos. E expõe lacunas que precisam ser preenchidas clamando à importância de novos estudos sobre autismo no feminino. Ela explicita, com clareza, os desafios para obter suporte, o subdiagnóstico em mulheres, a “compreensão” enviesada sobre o autismo e as enormes pressões e cobranças sociais sobre o feminino.

Camila também aponta a não aceitação do outro e a relativização de momentos de crise e sofrimento como fatores que contribuem para tal pressão. Ela então, evidencia a crueldade da corponormatividade, mas também traz um antídoto na produção científica e artística de homens e mulheres autistas. Além disso, a pesquisadora mostra o lugar importante da literatura neste processo, inclusive como lugar de encontro e pertencimento.

Camila, então, parte para sua brilhante análise de “over load”. Que, confesso, é um dos meus poemas favoritos. E destaca a relevância do diálogo que ele propõe entre autistas e não autistas. Ela expõe o abuso médico e a crueldade da racionalidade nessas expectativas sociais. Com isso, mostra o processo que conduz a consequências negativas para a vida de muitas mulheres.

Já na análise de “Está faltando alguma coisa’”, a autora do TCC fala da ecolalia como recurso poético e destaca o sentimento de deslocamento nas mulheres autistas. Por fim, descreve o poema como “forte e intenso” ao revelar que, nele, o eu lírico descreve a situação de muitos que vivem sendo aprisionados pelo olhar do outro.

Na última análise, sobre “Eu te agradeço”, Camila fala da importância da autoaceitação e do autoconhecimento como meio para explorar habilidades e trabalhar dificuldades. Então,  pondera que a estrada não é reta e contínua. Afinal, uma mulher pode transitar pelos três poemas várias vezes na vida. Mas, ao chegar ao último, Camila Paz descobre a vitória. A riqueza como ela descreve o processo só torna essa conquista maior e mais grandiosa. Dessa forma, em “A Mulher autista nos poemas de Milena Martins Moura” fica evidente o papel da poesia de dar forma à complexidade de nossas vivências como mulheres autistas.

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