20/06 | 2 anos de Coletivamente

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O percurso de um diagnóstico

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Outro dia estava gravando novos episódios do “Mundo Autista” junto à diretora Radija Ohanna. Então, comentei com ela sobre a evolução e revitalização do canal. Isso porque o “Mundo Autista” é o canal mais antigo do YouTube brasileiro com protagonismo de autistas ainda em atividade. Porém, acredito que ainda há muito conteúdo de programas e shorts para ser produzido. Então, resolvi falar sobre como foi o meu diagnóstico de autismo. Afinal, essa é uma pergunta recorrente em entrevistas até hoje, em vários contextos e lugares.

Na realidade, às vezes eu penso que o meu diagnóstico de autismo não tem nada demais no sentido de que foi um laudo ainda na pré-adolescência. Ou seja, ele veio quando eu estava com 11 anos de idade. Então, a não ser nos primórdios do canal, nunca produzi conteúdo específico sobre ele. Mas, agora sinto a necessidade de falar disso. 

Afinal, algo que eu e a também apresentadora do “Mundo Autista” Selma Sueli Silva batalhamos muito para se tornar realidade agora está começando a se concretizar. Isso quer dizer que adultos finalmente estão recebendo o diagnóstico, sejam aqueles em que isso ocorre por causa dos filhos ou os que enfrentam desafios e procuram se encontrar. Estes dois casos aconteceram com a Selma, que é minha mãe.

Já no meu caso, o diagnóstico foi mais simples, o que não significa que não tenha as próprias particularidades. Isso porque eu recebi o laudo aos 11 anos de idade. Hoje, estou com 26. Além disso, sou filha de uma mulher também autista. Então, desde que eu era muito nova ela percebia que havia algo de diferente em mim, quando comparava com os padrões que as pessoas em geral esperam enquanto sociedade. Essas pessoas julgavam tal diferença como se fosse malcriação ou, em alguns momentos, timidez.

Porém, na percepção de minha mãe autista, mesmo que naquela época ela não soubesse do próprio diagnóstico, havia um olhar aprofundado para a minha essência. Isso porque eu tenho uma essência muito extrovertida, comunicativa e sociável. O que não tem nada a ver com ser autista ou não. Mas sim, está ligado ao que eu considero coerente no meu modo de ser e agir.

Muitas crises na infância

Acontece que, na infância, eu manifestei muitas crises de agitação e até agressividade verbal. Esses colapsos eram tão intensos que quem os visse poderia até julgá-los como se houvesse uma energia espiritual negativa tomando conta de mim. Para piorar, à medida em que eu fui crescendo, a interação com os outros tornou-se um desafio maior. Isso porque eu era aquela criança que mantinha boa relação com todos na escola, mas não se apegava a amigos e tinha dificuldade de se inserir em grupos. Porém, quando eu fazia alguma amiga, a amizade se tornava forte.

Assim, a minha interação social nunca foi tão problemática no que se refere à timidez, visto que essa característica não me trazia prejuízos funcionais, exceto quando eu manifestei fobia social na adolescência. Além disso, colegas e familiares definiam que eu evidenciava duas personalidades. Então, era como se eu fosse alguém doce e meiga que, em alguns momentos, perdia o controle e tornava-se agressiva e instável. Esse lado irascível, para piorar, tinha muita facilidade de saber o que atingia negativamente cada pessoa.

Também, havia em mim a carência de um filtro social e da noção de que em cada situação se age de um jeito diferente. Dessa forma, eu aplicava o mesmo comportamento para várias situações. Por exemplo, eu via colegas falando palavrões na escola e os repetia com os adultos no âmbito familiar. Tudo isso me garantiu o rótulo de uma criança e pré-adolescente difícil de lidar.

Com isso, a busca pelo meu diagnóstico se acirrou quando completei 7 anos de idade. Isso porque houve uma ruptura, na qual eu saí de uma escola pequena, na qual tinha liberdade e boas interações, para outro colégio onde não conhecia ninguém e a professora se dirigia à turma em um contexto geral. E não a mim, especificamente. Mas, quem era eu no contexto de todo mundo?

Boa com metáforas

Eu era muito literal. Porém, essa característica não aparecia de maneira óbvia. Afinal, eu era boa com metáforas. Mas, eu tinha muita dificuldade de entender as intenções dos outros. Então, chegava a ter material escolar furtado por colegas.

Minha mãe sabia que, mesmo as pessoas me considerando inteligente, até a inteligência pode ser prejudicial caso não seja aplicada de uma maneira funcional. E ela sabia, até por experiência própria e de outros familiares, que uma percepção aguçada pode ser fonte de sofrimento. E, pior, trazer uma impotência diante dessa dor, do tipo: “o que eu vou fazer com isso?” É que, às vezes, eu tenho mil ideias produtivas em que posso transformar meu sofrimento em criatividade. Mas, não consigo fazer isso por disfunção executiva, por exemplo.

Então, minha mãe percebia a necessidade de uma intervenção terapêutica. Não para que eu me tornasse uma pessoa moldada ou normalizada. Mas, para que eu fosse uma menina feliz que soubesse desenvolver estratégias para usar o que tem. Porém, eu me lembro de ter frequentado um médico que considerava improvável que eu fosse autista. Isso porque eu apreciava literatura e ciências humanas. E havia, naquela época, muito mais estereótipos sobre autismo do que hoje. Um deles era de que pessoas com essa condição quase necessariamente se interessavam por exatas.

Mesmo assim, recebi indicação para me consultar com um especialista em autismo. Então, depois de uma série de avaliações neuropsicológicas e entrevistas do psiquiatra comigo e meus familiares, veio enfim o meu diagnóstico. Porém, os profissionais daquela época eram muito conservadores na maneira de lidar com o autismo. Dessa forma, foi muito difícil sair do lugar de que eu era alguém que deveria ser cuidada e normalizada a todo custo. Mas, eu consegui romper essa barreira. E ter o diagnóstico foi fundamental para isso. Afinal, é como eu coloco no meu livro “Outro Olhar” (2015): “quem conhece as regras do jogo tem mais chances de vencer no final”.

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