A primeira legislação federal que garante direitos aos autistas e os equipara a pessoas com deficiência (PcD) — contemplando a eles todos os direitos já conquistados por essa população — no Brasil é a lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012. Portanto, no final de 2022, a chamada “Lei Berenice Piana” completou seu décimo aniversário. Quero, aqui, resgatar os detalhes do “nascimento” dessa lei e provocar a reflexão para os próximos dez anos dos direitos dos autistas no país.
Berenice Piana de Piana — nascida em Dois Vizinhos, no interior do Paraná, a 419 km da capital, em 1958, e hoje moradora de Itaboraí (RJ) — é mãe de três filhos, sendo o caçula um rapaz autista, o Dayan, nascido em maio de 1994 (hoje, com 28 anos). A busca pelo diagnóstico, no início da infância do filho, e que só se concretizou entre seus 6 e 7 anos de idade, a levou a uma militância por direitos dos autistas, por diagnóstico e, principalmente, por tratamento na rede pública de saúde.
O início de uma batalha
Mas o que fez essa mãe lutar por direitos dos autistas? “Havia um desconhecimento total sobre esse assunto com qualquer pessoa que eu falava, principalmente por parte das autoridades. Ninguém sabia nem o que era autismo. Levei esse sentimento para meu pai, quando o visitei, no Paraná. Ele organizava uma reunião com várias mães locais para eu conversar com elas, orientá-las quando ia para lá. Aí me veio a ideia de que estávamos precisando de uma legislação federal”, recordou Berenice.
A ação prática que ela tomou aconteceu ao voltar para Itaboraí. Parou na capital paranaense para fazer contato com um senador curitibano. Quem a recebeu foi seu assessor, anotou sua demanda e a colocou numa gaveta. “Vi que não ia acontecer nada, pela forma que fui recebida. Então, decidi que tinha que procurar outros senadores e deputados federais. Foi quando decidi fazer um curso em Brasília, para me aproximar de quem pudesse conhecer um político que pudesse me ajudar. Fiz, então, um curso de uma semana na Embrapa. Conheci muitas pessoas que me indicaram vários parlamentares e ministros, entrei em contato com todos, alguns pessoalmente, fui no gabinete deles, outros por e-mail, mas foi em vão. Ninguém me respondeu nada”, narrou Berenice, que não desanimou e que, nessa época, já havia conhecido Ulisses da Costa Batista.
A luta de um pai
Neste ponto, temos que voltar um pouco na linha do tempo para brevemente contar quem é esse Ulisses que apareceu na história agora. Ulisses da Costa Batista, nascido na cidade do Rio de Janeiro, em 1966, é pai do Rafael, um rapaz de 26 anos, diagnosticado com autismo em 1999, entre os 3 e 4 anos de idade.
“Em 2001 e 2002, vendo a dificuldade de muitos pais em tratar seus filhos autistas, tive a ideia de uma lei, pois o autista não era considerado pessoa com deficiência (PcD). Levei a sugestão à Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro entre 2003 e 2004, o que resultou naquela que foi a primeira legislação municipal reconhecendo [a pessoa] autista como pessoa com deficiência no Brasil, a lei nº 4.709, de 2007“, narrou Ulisses. Mas o prefeito entrou com uma ação na Justiça, alegando que reconhecer um transtorno como uma deficiência caberia somente a uma legislação federal. Ulisses ainda relembrou: “Essa discussão acabou indo para o Supremo Tribunal Federal (STF), mas essa é outra história”. Ulisses destacou que “aquela lei originou o Cema-Rio, Centro Municipal de Atenção à Pessoa com Autismo, inaugurado em 2009, com psicólogos, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais”.
Determinado, enquanto lutava pela lei municipal, ainda em 2005, Ulisses Batista foi à Defensoria Pública para cobrar do Estado do Rio de Janeiro que disponibilizasse tratamento para autistas na rede pública, o que originou uma ação civil pública contra o Estado. Ainda em 2005, ele entrou com denúncia contra o Brasil na Organização dos Estados Americanos (OEA), a fim de conseguir uma pressão internacional pelos direitos dos autistas no país.
Esse movimento foi ganhando notoriedade, e Ulisses foi conhecendo mais pais ativistas. Convencido de que era necessário termos uma lei federal em prol dos direitos dos autistas, ele fez contato com o senador Cristovam Buarque, do Distrito Federal, que era, então, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), e agendou uma audiência para novembro de 2009.
“Nessa época, fui conhecendo mais pessoas e amigos em comum me disseram que havia uma mãe, de Itaboraí, que também lutava pelos direitos dos autistas e que deveríamos nos conhecer. Assim, fomos estreitando laços, pois ela também estava em contato com o Senado, com conversas bem adiantadas com o senador Paulo Paim (do Rio Grande do Sul), então vice-presidente da mesma comissão, a CDH, também pedindo uma audiência. Aí nos unimos”, detalhou Ulisses, que relatou conseguirem, inicialmente, fazer uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), com a presença de mais de 100 pessoas, muitas delas vindas de Volta Redonda (RJ), lideradas e incentivadas por Claudia Moraes, da Associação de Pais de Autistas e Deficientes Mentais (Apadem), que lotou um ônibus “de linha” para levar famílias ao evento, num total de aproximadamente 40 pessoas daquela cidade.
Mais uma pausa na nossa linha do tempo se faz necessária. Claudia Coelho de Moraes, mãe de dois garotos, um deles autista, o Gabriel (nascido em 1989, hoje com 33 anos), que teve um diagnóstico tardio, apesar de a mãe desconfiar de autismo aos 2 anos, mas o diagnóstico efetivamente veio aos 12. Na época da audiência na Alerj, ela era a presidente da Apadem, em Volta Redonda — e já era ativista pela causa desde o ano 2000. Claudia atuou muito nos bastidores, numa época em que mandar emails para todos os senadores e deputados federais, por exemplo, era algo que demandava tempo e dinheiro, quando ainda se contava com internet discada (por linha telefônica) e o ativismo digital não era tão acessível como hoje.
“Era uma época de ‘internet à manivela’. Cheguei a passar um dia inteiro para enviar 200 e-mails”, citou nostálgica, Claudia. Liderando um grande grupo de famílias e tendo uma rede de contatos em diversos estados, Claudia era uma das primeiras a atender às demandas de Berenice e seu grupo quando era preciso fazer pressão sobre as autoridades e divulgar informações para a comunidade em geral. “A audiência na Alerj foi o ponto de partida para ganhar mais relevância e trazer mais gente para apoiar essa iniciativa. Os pais tiveram uma atuação muito forte, não havia autistas ainda participando ativamente do processo, porque ainda não tínhamos contato com os que participavam mais”, comentou Claudia, referindo-se a um grupo, ainda muito pequeno, de autistas protagonistas no ativismo e que eles desconheciam naquele momento. Vale destacar que, no ano passado, Claudia recebeu seu próprio diagnóstico de autismo. Ela era uma autista protagonizando aquele ativismo, mas ainda não sabia disso.
Não se pode deixar de citar Nilton Salvador, que foi outro pai ativista muito atuante, iniciando sua luta vários anos antes de todos esses, e que contribuiu muito também nos bastidores. Claudia escreveu uma homenagem a ele, aqui na Revista Autismo, em dez/2020, citando sua atuação. Infelizmente, Nilton faleceu em 2020.
TV Senado
Voltemos, então, à tal audiência pública na Alerj, onde se encontram Berenice, Ulisses, Claudia e Eloah. Mais um nome novo: Eloah Antunes é outra mãe de autista, ativista da causa e amiga de Berenice, que atuou ao lado dela em muitas ações, principalmente ações locais, no Rio de Janeiro e em Niterói. “Foi Eloah a amiga que me disse que eu precisava conhecer o Ulisses. Eu perguntei:, ’Você o conhece?’ Ela disse que não, só por trocas de e-mail. Então, ela convidou o Ulisses para a audiência da Alerj, quando nos conhecemos pessoalmente”, contou Berenice, que conheceu a bióloga Eloah também por e-mail, um convite para um seminário em Niterói (RJ) — à época, Eloah era vice-presidente de uma entidade de lá — e a inscrição tinha de ser feita por telefone. Foi quando elas conversaram pela primeira vez.
A parir da audiência — que contou com a apresentação de Saulo Laucas, autista cego, cantor que encantou a todos mostrando o poder da sua voz de tenor —, todos assumiram a missão de escrever uma legislação federal. O ano era 2009 e, liderado por Berenice e Ulisses, o trabalho de construir, a várias mãos, a proposta de iniciativa popular que seria levada ao Senado Federal foi iniciado.
Voltando à história de Berenice, ela estava determinada a fazer contato com um senador que lhe desse ouvidos. A estratégia que ela escolheu foi, no mínimo, inusitada: ela começou assistir ao canal TV Senado compulsivamente. “Queria ver quem, ali, teria uma fala que me parecesse mais confiável, anotei contatos e sabia, mais ou menos, quem teria mais chance de me responder”, explicou Berenice, sobre sua avaliação de cada senador para identificar os mais sensíveis à causa. Ela escolheu alguns poucos, bem poucos. E quem lhe respondeu e deu atenção foi o senador Paulo Paim, que conduziu toda a tramitação do projeto e orientou Berenice. “O caminho foi um tanto tortuoso”, avaliou ela, que passou a ir para Brasília, em inúmeras reuniões. “No dia 24.nov.2009, nós estávamos em Brasília, numa audiência na CDH”.
Para redigir o anteprojeto da lei, muitas pessoas colaboraram, Berenice admite nem lembrar o nome de todos. “Muitas coisas que escrevemos eram inconstitucionais”, confessa ela, mas o texto foi sendo lapidado pouco a pouco até tomar forma de algo apresentável para ser protocolado como uma sugestão de projeto de lei de iniciativa popular. Na comunidade ligada ao autismo também havia gente contrária à criação dessa lei, mas o trabalho seguiu em frente.
De sugestão a um projeto aprovado
Em maio de 2010, Berenice levou a Brasília o anteprojeto que recebeu o nome oficial de “Sugestão nº 1, de 2010”, e o protocolou na CDH do Senado Federal, para iniciar a tramitação do que se tornaria o projeto de lei (PL) nº 168, em 2011, uma das pouquíssimas sugestões de iniciativa popular para um lei. O senador Paulo Paim citou esse momento em um de seus pronunciamentos no Senado: “Me foi apresentada uma sugestão de projeto que trata da política nacional para proteção dos autistas”, relembrou ele em 27.jun.2011, após a aprovação.
Com aprovação das comissões e, depois, com a aprovação em plenário no Senado no dia 16.jun.2011, o projeto, enfim, seguiria adiante. Uma sessão pública foi realizada para comemorar essa primeira vitória, no próprio Senado Federal. Foi quando, inclusive, eu fiz um pronunciamento (já como co-fundador e editor-chefe da Revista Autismo, além de pai), logo após Ulisses Batista, e recebemos o Prêmio Orgulho Autista, do Movimento Orgulho Autista Brasil (Moab), liderado por Fernando Cotta.
Está aí outro nome que precisa ser lembrado. Pai de um rapaz autista, Cotta liderou um movimento que iniciou em Brasília e se alastrou Brasil afora, o Moab. O Prêmio Orgulho Autista anualmente premiava as melhores iniciativas na comunidade e ajudava a divulgar informações sobre autismo, além de lutar pelos direitos dos autistas no Distrito Federal (com diversas conquistas de leis locais) e, depois, até mesmo leis federais. Algumas vezes, quando Berenice não pôde viajar a Brasília, Fernando Cotta fez as vezes dela e a representou em reuniões e demandas.
Na Câmara dos Deputados
Ao contrário do que acontece com a maioria dos projetos, que vão da Câmara para o Senado e, depois, para a Presidência da República, por ter sido uma iniciativa popular protocolada diretamente no Senado, o projeto foi para a Câmara dos Deputados — onde recebeu o nome de PL 1631/2011 — para depois seguir para a sanção da presidente. Lá, houve mais percalços, para resumir, cito uma modificação, que fez o projeto ter de ser votado novamente no Senado e, então, aprovado na Câmara. Fácil dizer isso em um parágrafo, mas foram mais 15 meses de idas e vindas de Berenice a Brasília, além de inúmeras articulações e “chuvas de emails” (como ela e Ulisses mesmo diziam quando enviava mensagens à comunidade para pressionar os legisladores) e ajuda das então deputadas Mara Gabrili (SP), Rosinha da Adefal (AL), do deputado Hugo Leal (MG) e outros. O projeto foi aprovado na Câmara em 4.set.2012, após três dias, foi reenviado ao Senado e, só então, encaminhado ao Poder Executivo, em 7.dez.2012.
“Recebi uma ligação do senador Paulo Paim, em meados de dezembro de 2012, me perguntando como deveria se chamar essa lei, pois um nome específico ajudaria muito para que a lei fosse divulgada e conhecida. Ele queria batizá-la, mas estava indeciso. Tive a ideia de sugerir que a lei se chamasse Berenice Piana, pois, após mais de 20 anos militando nessa causa, vi que grande maioria dos lares dos autistas tem somente sua mãe como referência para cuidar deles. Eu sei que conhecemos alguns casos de pais ativistas, mas na grande maioria são as mães que lutam, e esse impacto seria grande. E as mães seriam as grandes propagadoras dessa lei”, detalhou Ulisses.
“Foi muito engraçado quando a Berenice ouviu que a lei teria seu nome. Ela me ligou e disse que não seria justo a lei ter o nome dela e não ter meu nome. Foi quando a tranquilizei e disse que a sugestão havia sido minha. ‘E a garota propaganda dessa lei vai ser você!’. Ela cumpre com louvor esse papel”, rememorou Ulisses.
Vinte dias depois de chegar ao Executivo, o projeto foi sancionado pela então presidente, Dilma Rousseff, em 27.dez.2012, com vetos em três trechos, sendo publicado no dia seguinte, no Diário Oficial e se tornando efetivamente uma lei em prol do autismo.
Os próximos 10 anos
Olhando para trás nessa história que começou há mais de dez anos, é importante olhar para o futuro, para os próximos dez anos. “Não podemos pensar que vamos parar no tempo e que a lei de 2012 vai contemplar todo mundo por muito tempo. Creio que vão vir modificações, outras leis que possam somar. Que nós saibamos construir e que, daqui para frente, as coisas se tornem mais fáceis pelo conhecimento que temos. Que esqueçam um pouco os egos e os ‘likes’ das redes sociais e que possamos pensar no autista lá da ponta, que não tem acesso, que a família não tem condições de bancar [o tratamento]. Espero que as mudanças venham, que sejam bem-vindas, mas que não esqueçamos a história desse movimento, que aprendamos com o passado e construamos um presente e um futuro melhores”, filosofou Claudia Moraes.
Para a defensora pública Renata Flores Tibyriçá, “Ainda temos enormes desafios para os próximos anos. A despeito da criação da lei, ainda temos uma precariedade na implementação das políticas públicas, referentes à saúde, educação, assistência social, sem contar questões referentes à moradia, lazer e outras tantas demandas não reconhecidas. Hoje, ainda é preciso exigir no Judiciário alguns dos direitos sociais mais básicos, o que não deveria ocorrer, passados esses dez anos da lei”, avaliou a defensora pública, que também é doutora em distúrbios do desenvolvimento. “Os movimentos de direitos das pessoas com autismo têm que se unir e fazer um grande barulho para exigir que esses direitos sejam colocados em prática e possam se reverter em bem-estar e uma vida digna para as pessoas com autismo”, completou Renata Tibyriçá, que escreve, nesta edição da Revista Autismo, um artigo sobre os dez anos da lei 12.764/12.
“A grande luta nossa agora é tirar essas leis do papel. Não conseguimos aplicar muito disso no cotidiano das pessoas. Estamos precisando muito recorrer à Justiça. Talvez estejamos precisando de penas mais severas para aprimorar a lei”, avaliou Fernando Cotta.
Ulisses Batista também nos dá sua visão de futuro: “Faço votos de que, quando a Lei Berenice Piana completar 20 anos, tenhamos uma sociedade em que o diagnóstico precoce não seja mais uma surpresa ou momento de grande dor para os pais e familiares; que o tratamento para o TEA seja de fácil acesso às famílias brasileiras; que nenhuma criança com autismo seja privada de um lar e de uma família. E, por fim, que as pessoas com autismo vivam em uma sociedade acolhedora”.
Sem dúvida, há muito ainda por ser conquistado. Para Berenice Piana, o futuro é incerto, mas ela é otimista: “Não sei o que será no futuro. Mas espero que aconteça o melhor para nós. Espero que, de verdade, alguém possa olhar com carinho e humanidade para uma causa tão sofrida e que se arrasta há tantos anos”, finalizou ela.
Logicamente, muito mais gente, centenas, senão milhares, de anônimos estiveram envolvidos e colaboraram com a criação da Lei Berenice Piana em diferentes proporções. Seria impossível fazer jus a todos nesta reportagem —, mas optei por um relato majoritariamente baseado na perspectiva da mãe que deu nome à lei.