Cássia* recebeu o diagnóstico do transtorno do espectro autista (TEA), nível 1 de suporte, aos 43 anos. Isso fez com a criadora de conteúdo do perfil @literalmente_autismo enxergasse a própria vida com mais empatia, principalmente a sua infância, um dos períodos mais difíceis que viveu.
“Pude perdoar a minha infância, da qual tanto me envergonhei. Dei muito trabalho, fui inconveniente, inadequada, inadaptável e morria de vergonha disso. Sempre passei por cima das minhas necessidades como um trator, ignorando-as completamente. Por isso, tive tanta depressão e tanto cansaço. Com o diagnóstico, passei a pegar mais leve comigo”, conta.
A psicóloga e psicopedagoga Luciana Garcia, especializada em neuropsicologia e em reabilitação neuropsicológica pela Universidade de São Paulo (USP), explica que o TEA é um transtorno do neurodesenvolvimento, em que os sintomas começam a ser percebidos nos primeiros anos da infância.
“Ele é caracterizado por dificuldades na comunicação e interação social. Muitas vezes, há atraso de linguagem ou desenvolvimento normal da fala, só que com um ritmo mais mecanizado ou muito correta. A pessoa com autismo pode ainda apresentar movimentos incomuns, repetir frases que lhe foram ditas, ter inflexibilidade para mudanças na rotina e mostrar comportamentos metódicos e sistemáticos”, detalha.
Macarrão o tempo todo
Cássia gostava de comer apenas macarrão quando criança, tinha preferência por um único brinquedo e queria usar a mesma roupa todos os dias. “Não gostava de beijos e abraços, apenas os da minha mãe. Brigava quando saía de casa, chorava muito e implorava para ir embora. Não tinha amigos. Não gostava de nada diferente na minha rotina”, lembra.
O cenário mudou ainda na infância, quando Cássia começou a mascarar seus comportamentos, estratégia chamada de masking ou camuflagem social. Esse hábito, comum entre mulheres com TEA, dificulta o diagnóstico do transtorno.
“Eu copio pessoas. Copio os gestos, o tom de voz, os trejeitos, a postura corporal. Contenho minha vontade de me balançar, de fazer posições estranhas com as mãos e dedos, de olhar para baixo durante uma conversa. Ignoro sons muito altos, cheiros muito fortes, calor extremo, dor física e emocional para que ninguém perceba. Fisicamente, sou outra pessoa”, detalha Cássia.
Só que esse esforço intenso para inibir os sinais associados ao autismo pode levar a pessoa ao quadro de meltdown.
“Quando há uma sobrecarga sensorial grande, a pessoa com TEA pode ter uma explosão devido a uma desregulação emocional forte”, explica a psiquiatra Christiane Ribeiro, membro da comissão de estudos e pesquisa em saúde mental da mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria.
“Sinto que meu cérebro derrete nesses momentos, pois não consigo mais pensar. Meus membros pesam e não consigo me mexer. Não tenho vontade de falar e nem de fazer nada depois de um dia de muita interação social. Acabo desabando na cama, de roupa e tudo, para só depois de horas conseguir fazer o básico, como me trocar”, relata Cássia.
Esse desgaste emocional constante para se encaixar dentro da sociedade faz com que mulheres com autismo se tornem mais vulneráveis a desenvolver outros transtornos psicológicos, como depressão e ansiedade, devido ao sofrimento constante que experienciam.
Outros problemas
O TEA ainda pode vir associado ao transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), problemas gastrointestinais, motores, epilepsia e distúrbios do sono, segundo Luciana Garcia.
Além de conseguirem mascarar seus comportamentos devido à capacidade elevada de imitação, mulheres com autismo costumam ter hiperfoco em assuntos que são menos incomuns e, consequentemente, mais aceitos socialmente. Por exemplo, elas tendem a gostar de atividades relacionadas a artes e ciências.
“Isso leva muitas pessoas a acharem que elas são apenas mais tímidas, reservadas, e intelectuais”, explica a psicóloga e psicopedagoga. A ausência de estudos voltados ao público feminino com TEA também é um fator importante no desafio do diagnóstico de mulheres.
O grau do autismo também influencia no diagnóstico feminino. Christiane Ribeiro explica que ao ser uma mulher nível 1 de suporte, como Cássia, seu quadro tende a ser subdiagnosticado. Isso porque os sintomas do TEA podem ser associados a outros transtornos.
As duas especialistas citam que o principal alerta em relação ao autismo em mulheres adultas é a dificuldade que elas têm de estabelecer relações profundas com outras pessoas, como amizades duradouras.
“Além das dificuldades de manter relacionamentos íntimos, com a sensação de não pertencimento, as mulheres frequentemente se queixam das oscilações de humor, da intensidade das suas emoções, por não conseguirem expressá-las, e grande sensibilidade sensorial”, detalha a psiquiatra.
Procura por profissional
Diante da suspeita do quadro, é fundamental procurar por um profissional especializado em TEA para que ele possa acompanhar o processo de diagnóstico do transtorno.
“Atualmente, faço acompanhamento em terapia, com uma profissional especializada. Ela está me ensinando a identificar e nomear meus sentimentos. Está sendo interessante, inclusive porque, pela primeira vez na vida, retirei os remédios antidepressivos e estou me sentindo bem e estável sem eles”, conta Cássia.
*Cássia pediu para que seu sobrenome não fosse publicado
FONTE: https://revistamarieclaire.globo.com/saude/noticia/2023/10/ao-descobrir-o-autismo-aos-43-anos-pude-perdoar-minha-infancia-da-qual-tanto-me-envergonhei.ghtml