Provocaram reações imediatas da comunidade autista informações que vieram a público sobre o depoimento à polícia de Igor Cabral, preso em Natal (RN), no dia 26 de julho, por tentativa de feminicídio, após atacar a namorada com mais de 60 socos no rosto. Em entrevista à Inter TV (afiliada da Rede Globo), a delegada responsável pelo caso disse que o agressor alegou ser autista e que teria cometido o crime porque estaria em surto por causa de uma crise de claustrofobia, mas logo depois a defesa aurgumentou que ele tem um filho autista, vivendo atualmente com a mãe.
“Isso é mentira. Ele não é autista. É apenas um agressor tentando escapar da responsabilidade de seus atos. Usar o autismo como pretexto para um crime de ódio é, além de oportunista, uma forma grotesca de desinformação. É canalhice”, diz Guilherme de Almeida, presidente da Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas (Autistas Brasil). A organização publicou uma nota de repúdio a qualquer tentativa de associar o TEA (Transtorno do Espectro Autista) a episódios de violência deliberada.
“A ciência é clara. O autismo não está ligado a comportamentos violentos, premeditados ou intencionais. Quando pessoas autistas apresentam reações intensas, isso tem relação com sobrecarga sensorial, frustração ou dificuldade de comunicação não com violência planejada contra terceiros. Esse tipo de alegação reforça uma lógica histórica perversa. Pessoas autistas são vítimas da violência, não suas autoras. Sofrem abusos, exclusões, maus tratos, negligência. Colocar a marca da violência nas mãos da vítima histórica é inverter papéis, é alimentar estigmas que já custam caro demais para serem desconstruídos. O caso não fala sobre autismo, fala sobre feminicídio e a brutalidade de um homem que deve ser responsabilizado até o limite da lei. Não se pode admitir que uma condição neurológica legítima e digna seja instrumentalizada para encobrir a barbárie”, afirma Almeida, que é autista e pesquisador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) na área de educação inclusiva.
“O autismo não é desculpa, nunca foi. A violência não se justifica e a sociedade precisa entender de uma vez por todas que desinformação como essa é um golpe direto contra milhões de pessoas que só querem viver com dignidade”, completa o presidente da Autistas Brasil.
Desregulação e autoagrssão
O neuropsicólogo Fabiano de Abreu Agrela Rodrigues explica ao blog Vencer Limites quais situações podem desencadear comportamentos agressivos em autistas. “São mais frequentes em autoagressão, dirigidos a si mesmo, durante momentos de desregulação sensorial ou emocional. Embora o comportamento direcionado a outros possa ocorrer, geralmente como resposta sobre a carga sensorial, frustração ou dificuldade de comunicação, a prevalência de autoagressão é maior. Os estudos indicam que 30% a 50% das pessoas com TEA apresentam comportamentos autoagressivos em algum momento, enquanto a agressividade a outros é bem menos comum”.
O especialista é pós-PhD em neurociências e mestre em psicologia, membro de instituições com o Sigma Xi (The Scientific Research Honor Society), Society for Neuroscience e (APA) American Philosophical Association (EUA), Royal Society of Biology e The Royal Society of Medicine (Reino Unido), e The European Society of Human Genetics (Áustria).
Sobre a alegada “crise de claustrofobia” do agressor à namorada no elevador, Fabiano de Abreu Agrela Rodrigues ressalta que “clinicamente, isso é coerente, segundo estudos, pois a desregulação sensorial pode ativar respostas de luta e fuga, que levam a comportamentos impulsivos ou defensivos. Estudos científicos publicados sugerem que a hipersensibilidade sensorial no TEA pode intensificar respostas emocionais extremas e levar a reações de contextos mais específicos. Porém, todo caso tem que ser analisado porque, de acordo com a razão pela qual estamos conversando sobre esse tema, da maneira que foi, a coordenação, o tempo que foi, as circunstâncias, eu acredito que é muito pouco provável”.
Para a advogada Lorrana Gomes, que é mãe atípica, usar uma condição como o autismo para tentar justificar um ato de agressão pode resultar em implicações legais.
“Quando uma pessoa se vale de um diagnóstico, ela tem de comprovar por meio de laudo médico. Ele (Igor Cabral) precisaria apresentar esse laudo e provar que a agressão tem correlação direta com a condição”, afirma a advogada, que faz parte da Comissão de Admissibilidade do Processo Ético-Disciplinar da OAB/MG.
“Não podemos vincular uma condição a um ato criminoso, é necessário entender todo o contexto clínico e isso, certamente, vai ser feito dentro do processo criminal. Se for comprovado que, de fato, essa condição existe e teve contribuição para o ocorrido, nesse caso, pode ser que haja uma atenuante. E se for comprovado que é mentira, não existe laudo e, na verdade, ele fez uso disso para tentar se safar, usando de uma condição, pode agravar a situação, no sentido de demonstrar má-fé processual e acabar, lá na frente, contribuindo para uma eventual condenação”, avalia a jurista.
“Essa consequência jurídica pode acontecer dentro do próprio processo, mas é importante ressaltar que é o profissional habilitado, psiquiatra ou neuropediatra, quem confirma o diagnóstico e, nesse caso, é necessário também entender o contexto”, diz Lorrana Gomes.
Tentativa de feminicídio
A Polícia Civil do Rio Grande do Norte indiciou Igor Eduardo Pereira Cabral, 29 anos, por tentativa de feminicídio. O ex-atleta de basquete agrediu a namorada com mais de 60 socos dentro de um elevador em condomínio da zona Sul de Natal.
Ele está preso desde o dia 26 de julho. A vítima, Juliana Soares, 35 anos, passou por cirurgia na última sexta-feira, 1, e segue em observação hospitalar.
No relatório final, a Polícia Civil solicitou ao judiciário a manutenção da prisão preventiva, já decretada, “diante da gravidade dos fatos, da periculosidade do indiciado e da necessidade de proteção à integridade física e psicológica da vítima”.
A defesa de Igor Cabral disse que vai aguardar os próximos passos do Ministério Público para se posicionar. Nesta segunda-feira, 4, o ex-atleta de basquete alegou, em nota, que “embora as circunstâncias ainda estejam sendo apuradas, sinto a necessidade sincera de expressar meu pedido de perdão a todos que, de alguma forma, foram afetados. Não tenho intenção de justificar nada, tampouco minimizar o impacto dos fatos. Apenas desejo que Juliana consiga encontrar força para seguir em frente, com serenidade, coragem e paz. A ela, sua filha e sua família, envio minhas orações e meu mais genuíno respeito”.
Ainda segundo o comunicado, Igor Cabral diz enfrentar o momento atual “com humildade e esperança de que, com o tempo, todas as partes envolvidas possam encontrar caminhos de cura, reflexão e recomeço”.
Igor Eduardo Pereira Cabral está preso na Cadeia Pública de Ceará-Mirim, na Grande Natal. Na semana passada, o preso chegou a denunciar maus-tratos e agressões sofridas por policiais penais. Entre as supostas agressões estão chutes, socos e uso de spray de pimenta. Ele teria sido colocado na cela algemado e sem roupas.
Em nota, a Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (Seap) disse que vai apurar a ocorrência. O interno chegou a ser deslocado para registro de boletim na Delegacia de Plantão da Polícia Civil e exame de corpo de delito no Instituto Técnico-Científico de Perícia. A investigação ficará a cargo da Polícia Civil. A Corregedoria do Sistema Prisional também foi acionada, segundo a Seap.
FONTE: https://www.terra.com.br/nos/usar-autismo-como-pretexto-para-cometer-crime-de-odio-e-grotesco-e-canalha-diz-presidente-de-associacao,badcb49c6a84551fca00aa5c1661f6b4dyid68kr.html