De acordo com o art. 1º, IV, da lei 8.989/95 – o qual dispõe, dentre outros, sobre a isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) na aquisição de automóveis por pessoas com deficiência – os portadores de autismo (CID F84.0 e CID F84.1) ficam isentos deste imposto no caso de compra de automóveis de passageiros, desde que respeitados os demais critérios previstos em lei. A existência do direito, portanto, é inquestionável. O principal problema que as pessoas no espectro vêm enfrentando, no entanto, é na fase anterior: o diagnóstico.
Na vigência da lei 10.690/03, a principal referência legal federal com respeito ao diagnóstico do autismo era o art. 1º, §4º, lei 8.989/95. Este dispositivo dizia que “A Secretaria Especial dos Diretos Humanos da Presidência da República, nos termos da legislação em vigor e o Ministério da Saúde definirão em ato conjunto os conceitos de pessoas portadoras de deficiência mental severa ou profunda, ou autistas, e estabelecerão as normas e requisitos para emissão dos laudos de avaliação delas”.
Com o advento da lei 14.287/21, no entanto, este parágrafo quarto foi revogado em prol da nova definição de pessoa com deficiência contida na lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que a define como “aquela com impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial que, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
Nova dificuldade
Ocorre que, a partir daí, uma nova dificuldade se apresentou: em se tratando de questão nova e, muitas vezes, negligenciada na formação dos profissionais da saúde, médicos que não sejam especialistas muitas vezes não conseguem diagnosticar o autismo, em especial em adultos (os quais certamente seriam os contribuintes beneficiados pela isenção em questão), frequentemente confundindo-o com transtornos inespecíficos de humor ou mesmo simplesmente negligenciando os sintomas.
Vale, neste ponto, citar o caso da atriz Letícia Sabatella, que teve o diagnóstico de autismo adulto apenas aos 52 anos. A atriz se definiu como uma pessoa muito sensível, destacando que a hipersensibilidade é uma característica do autista. Também relatou que, na infância, teve problemas de relacionamento, e que, durante toda a vida, foi rotulada pejorativamente. Para Sabatella, o diagnóstico de autismo, ainda que realizado na fase adulta, foi libertador, pois permitiu a ela, em suas palavras, “margear o seu caminho, porque uma pessoa que não se conhece fica muito mais suscetível a ser oprimida”1.
Nesse sentido, vale destacar que ao art. 21, lei 13.846/19, que instituiu o Programa de Revisão de Benefícios por Incapacidade, previu que a revisão e a concessão de benefícios tributários com base em perícias médicas serão realizadas somente após a implementação e a estruturação de perícias médicas especializadas para essa finalidade. Contudo, tal implementação ainda não ocorreu no Brasil. Assim, conforme o parágrafo segundo deste dispositivo, até que ela ocorra, ficam mantidos os atuais procedimentos para a revisão e a concessão dos benefícios tributários.
Rede despreparada para dar laudos
Em princípio, portanto, deveriam ser utilizados os critérios do art. 3º, decreto 11.063/20222, que limita a possibilidade diagnóstica, aceitando laudos de avaliação somente de serviços públicos de saúde, dos Departamentos de Trânsito (Detrans) ou de serviços sociais autônomos. Laudos de serviços privados somente poderiam ser aceitos se estes forem contratados ou credenciados no Sistema Único de Saúde (SUS). Ocorre que o autismo adulto, como se apontou, ainda é cercado de muito preconceito e falta de conhecimento, e a Rede Pública de Saúde – que seria, em tese, aquela indicada para efetivar o diagnóstico – ainda está despreparada para fazê-lo.
De fato, em audiência pública realizada na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado Federal, no dia 21 de junho do corrente ano, para marcar o Dia Mundial do Orgulho Autista, celebrado em 18 de junho, os debatedores lamentaram a precariedade do atendimento às pessoas autistas, cobraram a conscientização da sociedade e do governo sobre esse segmento da população e ressaltaram que as leis de apoio devem ser cumpridas. Na ocasião, a Professora Erika Karine Rocha Dallavechia, fundadora-presidente do Projeto Social Angelina Luz, citou a dificuldade de dar voz aos autistas adultos justamente porque persiste o pressuposto de deficiência intelectual desse segmento, destacando que, em verdade, antes mesmo da deficiência, deve-se perceber que se trata de seres humanos que estão sendo negligenciados. Na mesma ocasião, conforme relatado pela Agência Senado, a Presidente da Associação Brasileira de Neurodiversidade e do Coletivo Autistas Adultos Brasil, Ana Lecticia Soares Muller Lobo Rezende, relatou que teve diagnóstico tardio de autismo, aos 40 anos, e enfrentou diversas situações de abuso psicológico, citando, ainda, a dificuldade de dar voz aos autistas adultos. Segundo ela, mesmo por meios alternativos de comunicação, todo autista tem a capacidade de falar em seu próprio nome e de existir3.
Violação a direitos
Negar laudos de especialistas em autismo adulto apenas porque estes não são credenciados ou contratados pelo SUS, portanto, é uma evidente violação ao direito à saúde, garantido como direito fundamental social pelo art. 6º, da Constituição Federal de 1988 (CF/88) e como dever fundamental do Estado, nos termos do art. 196 e seguintes da Carta Magna, que prevê sua efetivação mediante políticas sociais e econômicas, bem como prevê acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. Assim, impedir que pessoas neurodiversas tenham seu diagnóstico, feito por especialistas, validado em pedidos administrativos ou judiciais de reconhecimento de isenção tributária, vai contra o próprio princípio de descentralização político-administrativa do Sistema de Saúde, prevista no art. 198, CF/88, e na lei 8.080/90, até porque o art. 2º, §2º, deste diploma legal é cristalino é em dizer que “o dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade”.
Também vale destacar o teor da Súmula nº 598, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que diz que “É desnecessária a apresentação de laudo médico oficial para o reconhecimento judicial da isenção do imposto de renda, desde que o magistrado entenda suficientemente demonstrada a doença grave por outros meios de prova”. O mesmo raciocínio, sem dúvidas, poderia ser utilizado para as isenções de IPI na compra de automóveis, ou mesmo nas isenções de IPVA, eventualmente previstas em legislação local, desde que inclusos os autistas como contemplados, em respeito ao princípio da legalidade.
Além disso, é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, cuidar da saúde e assistência pública, bem como cuidar da proteção e garantias das pessoas portadoras de deficiência (art. 23, II e IX, CF/88). Vale dizer que, na ADIn 672/DF, o Pleno do STF definiu que, considerando esta competência comum e a competência concorrente entre União e Estados/Distrito Federal para legislar sobre proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, CF/88), bem como a permissão constitucional, concedida aos Municípios, para suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, desde que haja interesse local (art. 30, II, CF/88), não se pode afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotem medidas de preservação do direito à saúde. Um bom exemplo, nesse sentido, são iniciativas concretas para a facilitação do diagnóstico de autistas – em especial os adultos.
Prazo indeterminado
Iniciativas como a Lei Distrital 6.898, de 14 de julho de 2021, que dispõe expressamente, em seu art. 1º, que “O laudo médico pericial que atesta o transtorno do espectro autista – TEA passa a ter prazo de validade indeterminado”, portanto, são louváveis, posto que retiram do contribuinte neurodiverso o ônus de ter de renovar seu diagnóstico – o qual, muitas vezes, só é possível por meio de especialistas que clinicam em outras cidades ou mesmo outros estados da Federação, até porque, em verdade, o autismo é condição que não tem cura, então sequer há finalidade prática na renovação periódica de laudos.
Em conclusão, muito embora haja restrição da possibilidade diagnóstica de autismo, pelo art. 3º, decreto 11.063/22, a serviços de saúde privados, cujo laudo é desconsiderado se não houver convênio ou contratação pelo SUS, tal restrição não deve persistir, administrativa ou judicialmente, considerando-se que o Estado Brasileiro ainda não cumpriu o dever de implementação e estruturação de perícias médicas especializadas imposto pelo Legislador Federal, por meio do art. 21, lei 13.846/19. Assim, enquanto tal implementação não ocorrer, considerando-se o atual despreparo do sistema público de saúde para o adequado diagnóstico do autismo (em especial o adulto), há fundamento constitucional e legal para que laudos de especialistas privados sejam utilizados como justificativa válida para a concessão de isenções tributárias, sejam elas de IPI, IPVA, ou quaisquer outra previstas em lei.
Paralelamente, se Estados, Distrito Federal e Municípios legislarem no sentido de facilitar o diagnóstico de autistas, tais leis não podem ser consideradas inconstitucionais, pois estarão preenchendo vácuo normativo federal, em nome do direito à saúde, em tudo respeitada a posição do STF na ADIn 672/DF, e as regras constitucionais de competência legislativa.
FONTE: https://www.migalhas.com.br/depeso/394902/a-dificuldade-no-diagnostico-de-autistas-adultos