20/06 | 2 anos de Coletivamente

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A garantia do direito à saúde é voltada à ideia de federalismo e exige a criação de um arranjo institucional estratégico por causa do exercício da competência administrativa comum, que deve ser efetivada por todos os estados-membros para efetivamente garantir à população aquele tipo de serviço público.

Sobre o tema, prescreve o artigo 196 da Constituição que a saúde “é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Percebe-se que a garantia estatal no que diz respeito ao direito à saúde se estrutura três frentes complementares e distintas: a) promoção, b) proteção, e c) recuperação.

Aquela previsão está em consonância com a organização mundial de saúde, que conceitua, desde a sua criação, em 1946, a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”

No que diz respeito ao arcabouço constitucional de repartição de competências, o Supremo Tribunal Federal tem entendimento consolidado por intermédio do tema de repercussão geral 793 de que “Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”.

Isso quer dizer que eventual direito subjetivo pode ser postulado de maneira solidária em face de todos os entes políticos, o que aumenta a possibilidade de a pessoa demandante ter seu pleito deferido, e isso é consequência de um dos fundamentos da República: o princípio da dignidade da pessoa humana.

Suporte constitucional

Há, portanto, um suporte constitucional à demanda no que diz respeito ao direito à saúde, e embora o Judiciário não tenha competência para estabelecer parâmetros prestacionais de planejamento, a mora da administração pública não pode ser argumento para que a repartição do poder entre executivo, legislativo e judiciário seja um fator impeditivo à efetiva prestação de uma política pública setorial voltada ao direito à saúde.

É tanto que o STF tem o entendimento de que “a intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos poderes”, nos termos do Recurso Extraordinário 684.612.

A intervenção do Judiciário na rotina administrativa, pois, deve ser legitimada por um acervo probatório que efetivamente demonstre que a administração pública não tenha fôlego para cumprir com o ônus constitucional a respeito das suas competências administrativas.

É isso que legitima a judicialização do orçamento, que deve ser entendida como o direito de ação voltado à consecução de uma garantia fundamental que não consegue ser ofertada pelo Estado, quer seja pela ausência de planejamento que possibilite a garantia de um direito subjetivo, quer seja por um estado de insuficiência orçamentária que lastreie financeiramente uma política pública previamente delimitada.

Nesse contexto de dimensionamento operacional de políticas públicas surge o cidadão, principal destinatário das ações do Estado, que embora pela primeira geração de direitos tenha sido alvo de um direito de liberdade em face dos excessos estatais, é na segunda geração que é o cliente orçamentário no viés da ação interventiva do Estado.

Paulo Bonavides bem pontua isso quando traz à tona a ideia de que os direitos sociais buscam igualdade política em um campo de representação de desigualdade social no sentido de transformar situações e para isso propõe o conceito de que “O Estado social, por sua própria natureza, é um Estado intervencionista, que requer sempre a presença militante do poder político nas esferas sociais, onde cresceu a dependência do indivíduo pela impossibilidade em que este se acha, perante fatores alheios à sua vontade, de prover certas necessidades existenciais mínimas”.

Deve, portanto, o Estado proporcionar um aporte de recursos no sentido de servir de cobertor social para a assistência aos desamparados, o que é resultado da teleologia do artigo 6º, caput, da Constituição, que outorga responsabilidade, além do direito à saúde, ao direito à educação e à moradia, por exemplo.

Ciente disso, o legislador infraconstitucional optou por legislar um plano de benefícios sociais, nos termos da Lei nº 8.742/1993, também conhecida como lei orgânica da assistência social (loas), que logo no seu artigo 1º define a assistência social como “direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidade básicas”.

Para dar efetividade à sua estrutura basilar, a loas criou o benefício de prestação continuada (BPC), que é “a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família”, nos termos do seu artigo 20.

O BPC proporciona a reflexão de que não existe dignidade da pessoa humana sem disponibilidade de renda e para isso coloca o Estado em uma posição de sujeito garantidor de direitos, seja por intermédio da prestação de uma política pública, como é o caso da construção de uma unidade básica de saúde, seja por um aspecto instrumental, como é a contratação de profissionais da saúde, ou ainda pela transferência direta de renda, como é o caso do deferimento de um BPC.

Elemento propulsor

Dessa maneira, é possível afirmar que o orçamento público é um elemento propulsor de distribuição de renda em todas as perspectivas em que se possam pensar, seja de uma política extrafiscal que induz a economia, seja no viés interventivo como é o caso de contratação de obras correlatas à infraestrutura, seja na prestação de assistência social como é a concessão de um benefício social.

No que diz respeito ao provimento do direito à saúde, a Lei nº 12.764/2012 institui a política nacional de proteção dos direitos da pessoa com transtorno do espectro autista e define a pessoa com autismo, em qualquer grau que seja, como uma pessoa com deficiência para todos os efeitos legais, nos termos do seu artigo 1º, §2º.

A título de informação, por aquele normativo, a pessoa com espectro autista é diagnosticada por duas características distintas.

A primeira é a “deficiência persistente e clinicamente significativa da comunicação e de interações sociais, manifestada por deficiência marcada de comunicação verbal e não verbal usada para interação social; ausência de reciprocidade social; falência em desenvolver e manter relações apropriadas ao seu nível de desenvolvimento”.

A segunda são “padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades, manifestados por comportamentos motores ou verbais estereotipados ou por comportamentos sensoriais incomuns; excessiva aderência a rotinas e padrões de comportamento ritualizados; interesses restritivos e fixos”.

Como se vê, o espectro autista merece uma cobertura orçamentária significante que possibilite o desenvolvimento psicomotor de quem possui o seu diagnóstico e em recente estudo o INSS demonstrou uma estatística a respeito da crescente concessão de BPC para quem é diagnosticado com o espectro autista.

Aquela pesquisa demonstra um crescimento exponencial que pode implicar no questionamento se há espaço fiscal para o custeio do BPC, que pode ser entendido como uma política de custeio voltada à promoção da dignidade da pessoa humana para quem não possui, nem com a ajuda de sua estrutura familiar, autonomia financeira que possibilite o seu próprio desenvolvimento com o mínimo de dignidade.

O Direito Financeiro ensina que espaço fiscal é a possibilidade de elencar o custeio de despesas públicas discricionárias no orçamento disponível, já subtraídas as despesas obrigatórias, como são os aportes constitucionais, caso dos fundos de participação, e as despesas legais, como os fundos para custeio específicos de políticas públicas diretivas, caso do fundo de manutenção e desenvolvimento da educação básica e de valorização dos profissionais da educação (fundeb).

Aumento de despesas obrigatórias

O crescimento na concessão de BPC para pessoas com autismo resultou no aumento de despesas obrigatórias da União e conforme já registrou esta revista eletrônica Consultor Jurídico“se há um aumento na despesa primária obrigatória, em um pensamento inverso, necessariamente o gestor público deve diminuir o gasto primário discricionário em uma relação diametralmente oposta, e como o lençol é sempre curto, é preciso uma acrobacia performática para a prestação de serviços públicos adequados dentro do limite do teto de gastos”

Ora, se a pessoa que possui o diagnóstico de autismo é considerada pessoa com deficiência “para todos os efeitos legais”, logo o seu núcleo familiar é público-alvo para a concessão de BPC, o que implica no entendimento de que é necessário encontrar espaço fiscal para a garantia da dignidade da pessoa humana àquelas pessoas e seus respectivos grupos familiares.

Até porque, a partir do seu deferimento, o BPC até então não previsto, passa a ser uma despesa de caráter obrigatório e continuado com o devido espaço orçamentário e o seu respectivo aprisionamento financeiro.

Acontece que a promoção da dignidade da pessoa humana vai além da concessão de um benefício social e deve ser pensada como a deferência de um direito como um todo e recentemente, ainda sobre autismo, o Tribunal Superior do Trabalho (TST), mesmo sem autorização legal, possibilitou redução de carga horária de trabalho para uma mãe que possui filhos gêmeos com autismo.

No caso em apreço, a casa da justiça social deferiu a redução de oito para quatro horas da jornada de trabalho de uma empregada do Banco Bradesco S.A. por ser mãe de gêmeas autistas.

Conforme decisão da sua sétima turma, “O colegiado aplicou, por analogia, regra do Regime Jurídico Único dos servidores públicos federais (Lei 8.112/1990) que possibilita redução de jornada de quem tenha filho com deficiência sem a diminuição dos vencimentos” .

Causa boa impressão o comportamento da jurisdição trabalhista que, no desafio diário de interpretar a jurisdição constitucional de forma a lhe dar efetividade, por intermédio da analogia, regra de interpretação básica trazida pelo artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), ao apreciar uma natureza jurídica laboral regida pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aplicou um regramento exclusivo do serviço público, que é a lei nº 8.112/1990.

Como se vê, a cobertura estatal no que diz respeito ao autismo vai muito além de ações orçamentárias, como é a concessão de BPC e da judicialização do orçamento, que é a busca compulsória daquele benefício social quando eventualmente o direito lhe for negado administrativamente.

A resposta estatal ao autismo vai ao máximo e encontra na analogia uma estratégia de interpretação que efetivamente garanta a dignidade da pessoa humana. Tanto de quem tem autismo, como da estrutura familiar envolvida.

Além disso, às mães que possuem o autismo em seu cotidiano, a justiça enxerga até onde não há lei permissiva para a concessão de direitos que proporcionem efetiva inclusão, caso da analogia, conforme o recente precedente do TST, que aplicou regras do direito público ao regime eminentemente celetista.

Assim, o autismo possibilita uma paráfrase ao pensamento de Rui Barbosa “o direito não socorre aos que dormem” no sentido de trazer uma reflexão de que “o direito não dorme para quem precisa de socorro”.

Para isso busca estratégias orçamentárias, caso da concessão administrativa do BPC, ações interventivas, caso do deferimento via ativismo judicial, e estratégias interpretativas, exemplo da analogia do TST.

FONTE: https://www.conjur.com.br/2024-ago-12/autismo-inclusao-orcamentaria-e-dignidade-da-pessoa-humana/

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