Legislação a respeito não falta. Contam-se às dezenas as leis — nas esferas federal, estaduais e municipais — que tratam dos direitos das pessoas com deficiência e, mais especificamente, com Transtorno do Espectro Autista (TEA). A Lei 13.146, de 2015, prevê pena de até três anos de reclusão. Ainda assim, casos de discriminação são frequentes. Semana passada, Alexsandra Menaguali Lima procurou a polícia para registrar queixa contra uma academia em Copacabana que teria se recusado a matricular seu filho, Augusto Menaguali Lima, de 22 anos.
A justificativa de um funcionário do estabelecimento para a recusa foi direta: a matrícula não seria possível, pois a casa já tinha tido “problemas com autistas”.
“Na hora que eu falei a palavra autismo, eles recusaram. Ninguém me perguntou o suporte, nível, nada. Eu nunca vi isso”, revolta-se Alexsandra.
Augusto é suporte nível um, considerado um grau leve de autismo. O jovem é independente e tem autonomia para fazer quase tudo sozinho. As exceções são estabelecidas pela mãe como forma de proteção, e não por limitações. Ele vai à praia com frequência, nada, vai às consultas sozinho, pega veículos por aplicativo. Atualmente, também está fazendo autoescola.
O rapaz conta que, durante um ano, frequentou uma academia em Campo Grande, na Zona Oeste, onde a família morava antes de se mudar para Copacabana.
“Gostava muito, conhecia todos os aparelhos. Quando eu tinha dúvida, eu perguntava ao estagiário”, diz ele, que soube da negativa da academia pela mãe. “Fiquei muito triste ao saber que eu não poderia entrar porque sou autista. Nunca tinha acontecido algo assim comigo, foi a primeira vez.”
Problema estrutural
Para a defensora pública Marina Lopes, coordenadora do Núcleo de Defesa das Pessoas com Deficiência (Nuped), da Defensoria Pública do Rio, o problema enfrentado por Augusto é estrutural.
“O capacitismo, assim como o racismo e o machismo, é um preconceito enraizado. No caso do autismo, por exemplo, as pessoas consideram que é uma doença, e não é”, diz Marina, mãe de um menino autista de 8 anos. “Acontece que as pessoas estão tomando consciência dos seus direitos e passaram a ocupar espaços; elas não vão ficar mais em casa. Vão matricular as crianças em escolas e outros espaços. Então, é importante que haja conscientização para que as pessoas aprendam a lidar com o assunto.”
A psicóloga Juliana Pellegrino explica que autismo é um espectro e, por isso, as manifestações dos sintomas podem ser das mais diversas.
“Tem pessoas com maior sensibilidade, pessoas com menor. Não há motivo e nem há como uma instituição afirmar, categoricamente, que receber uma pessoa autista será um problema”, explica.
Ela ressalta que pensar em inclusão é um papel de toda a sociedade.
“Tem muita gente que entende que a inclusão é criar espaços adaptados que afastam essa pessoa dos espaços em comum. Mesmo que seja um espaço incrível, se é pensado de forma a retirar as pessoas neurodivergentes ou deficientes do que é compartilhado pelas pessoas “típicas”, não é um trabalho de inclusão”, pontua Juliana.
Caso não é isolado
O caso vivido por Alexsandra e Augusto está longe de ser isolado. Em busca de uma aula de natação para o filho, Élida Costa Brito, de 51 anos, já teve matrícula do pequeno Gael, de 7 anos, recusada em uma academia de Laranjeiras:
“É tão comum acontecer situações como essa… Meu filho foi fazer uma avaliação, e o professor disse que ele era muito agitado. As pessoas não estão preparadas para receber autistas. É preciso que essa mentalidade mude, as pessoas precisam mudar, estudar mais sobre o assunto. Ainda há muito preconceito.”
A busca de Élida por acolhimento só terminou quando ela encontrou a Associação Cristã de Moços (ACM), na Lapa. Desde o início do ano, Gael e mais dois colegas com TEA nadam livremente na piscina da entidade sob a supervisão de Kelly da Silva Ramos, de 38 anos.
“Eles passaram por um período de adaptação, acompanhados por uma psicóloga, e depois foram integrados ao restante da turma. A adaptação foi muito boa. São 30 alunos ao todo, e não há qualquer distinção. É muito gratificante ver que eles interagem, socializam, brincam. Tudo é resultado de um processo que demanda atenção e cuidado. Quando acontece de haver alguma alteração, a gente chama os pais, conversa, tudo com acompanhamento de uma assistente social”, diz a professora.
O crime de discriminação está previsto no Estatuto da Pessoa com Deficiência. A lei, de 2015, prevê de um a três anos de reclusão e multa. Em caso de recusa de inscrição de aluno em estabelecimento de ensino, a pena sobe para de dois a cinco anos. No Rio, a Lei 7.713, do ano passado, estabelece multas que vão de R$ 4 mil para pessoas físicas a R$ 8 mil no caso de empresas que cometam atos discriminatórios contra autistas.
“Temos um mosaico legislativo bastante importante. Dependendo da cidade e do estado, o número de leis pode ultrapassar as dezenas. Eu não tenho dúvida de que o arcabouço legislativo a respeito, no Brasil, é bastante razoável; o problema é a efetividade das normas”, analisa Vitor Almeida, professor de direito civil da Uerj e da PUC-RJ.
Referência no assunto, o professor de educação física Rodrigo Brívio, que atende mais de 450 pessoas com TEA no espaço que leva o seu nome, no Rio e em Brasília, acredita que a luta contra o preconceito e a desinformação é o maior desafio:
“Temos um contexto muito desfavorável em toda a sociedade, não apenas nas academias. É mais fácil dizer que não vai atender do que criar estratégias para fazer o atendimento corretamente. Na maior parte das vezes, não é maldade, é falta de conhecimento mesmo, que acaba gerando preconceito. É isso que precisa ser combatido.”
Procurada, a academia Fórmula, que teria se recusado a matricular Augusto, não se pronunciou.
Ao tentar, sem sucesso, fazer matrícula na academia de Copacabana, Augusto Menaguali usava o cordão do girassol. Ainda pouco conhecido no Brasil, o acessório já é empregado em vários países como forma de identificar pessoas com deficiências ocultas, aquelas cuja percepção nem sempre é imediata, como no autismo. Desde a última segunda-feira, o cordão passou a ser considerado “símbolo nacional de identificação” de pessoas com esse tipo de deficiência. A lei 14.624 diz ainda que o uso “é opcional, e sua ausência não prejudica o exercício de direitos e garantias previstos”.
FONTE: Jornal O Globo