“Toda essa questão do autismo é um pouco complicada pra mim. Já vi gente usando autista como xingamento, algo que me deixou muito ofendido. Por causa disso, não queria que soubessem que sou autista”, diz o menino Heitor Colombo, de 11 anos, morador de Florianópolis (SC), que recentemente tomou coragem para começar a falar com os colegas mais próximos sobre seu diagnóstico.
A sincera e bem articulada resposta do garoto é um atalho para entender o desafio que se descortina diante de meninos e meninas que estão dentro do Transtorno do Espectro Autista (TEA) em justamente nutrir laços sociais.
Esse não é um caso isolado, vivido por poucas pessoas. O autismo é uma alteração do comportamento cuja prevalência chega a 1 a cada 36 crianças, conforme o mais recente levantamento nos Estados Unidos sobre o tema — no Brasil, vale ressaltar, ainda não existe estimativa que mire o número de crianças com TEA.
Para essa turma, a chegada das férias impõe uma série de desafios que colocam os pais sob pressão. Afinal, com a pausa das atividades escolares, essas crianças e esses adolescentes costumam sentir a ausência do convívio mais próximo com garotos de idade semelhante. Além disso, a mudança na rotina e nos horários culminam em episódios de estresse e ansiedade. Ao mesmo tempo, os convites para festinhas, ou para brincar na casa de um amigo — algo absolutamente trivial para essa fase da vida — normalmente não chegam. O que dá o tom da rotina de solidão vivida por essas crianças. Um cenário que pode, inclusive, atrapalhar o desenvolvimento desses meninos e meninas no espectro.
“No aniversário do Heitor já houve crianças que confirmaram e não foram. E olha que já tive que fazer a festinha para menos colegas. Ele tem dificuldade de compartilhar alguns assuntos com gente da idade dele. Como existe um receio de se revelar, por medo de bullying, parece que ele simplesmente é mal-educado, e não é nada disso”, diz a mãe do menino, Stacy Colombo. “Ele é muito cooperativo, até ajuda os colegas no dever de matemática”.
Na casa de Ana Luiza Cabral Naziozeno, no Distrito Federal, o filho de 15 anos Robertinho conta com a ajuda da irmã, Maria Luiza, de 18, para não ficar isolado quando a esola está em férias. A garota e seus amigos costumam incluir o menino em passeios, uma vez que a turma da idade do menino não se faz tão presente. No ano passado, Robertinho chegou a ficar de fora da própria da festa de formatura da escola em que estudava, por falta de convite. A história ganhou repercussão nas redes sociais, o que rendeu um chamado para que o menino participasse da celebração junto aos alunos de outro colégio.
“Na adolescência, os jovens andam em bando, mas o Roberto anda só. Ele não tem tantos amigos, não conheço ninguém da turma dele, por exemplo. Dia desses ele pediu para fazer um bolo de aniversário para levar à escola, perguntei quem eram as pessoas mais próximas deles e ele não quis dizer, falou que era para “todo mundo””, lamenta a mãe. “Quando os amigos voltam das férias contando o que fizeram, ele nota que não foi convidado (para essas atividades). Roberto nunca foi chamado para festas de aniversário, só foi a festas da família, nunca de fora”.
Ana conta que em uma ocasião, um grupo ofereceu uma viagem de colônia de férias para as crianças do condomínio em que mora, mas fez ressalvas para incluir o menino na atividade, ao saber que ele tinha autismo:
“Eles disseram que não tinham como cuidar dele. Respondi que ele não precisava de cuidado, ele precisa só participar. Depois, tentaram refazer o convite, mas não deixei ele ir pois senti que eram despreparados”.
Diferenças são notadas
Em geral, essas famílias notam uma diferença muito sintomática em colegas que foram orientados pelos pais a abraçar as diferenças. É o que fica claro na fala de Laryssa Smith, mãe de Pedro, de 9 anos, também moradores de Santa Catarina. Embora tenha episódios de solidão vividos, o menino conta com dois bons amigos em sua rotina, uma garotinha da escola e o filho de amigos da família. Nos dois casos , a interferência de adultos que explicaram a necessidade de respeitar as divergências, apoiar o colega e fazer concessões para que as brincadeiras incluam Pedro, foram fundamentais para o sucesso da amizade.
“Essa colega não deixa o Pedro sozinho nunca, normalmente leva ele pela mão até a quadra. A criança que tem esse olhar inclusivo é mais atenciosa, quer sempre ajudar”, afirma Laryssa, que lamenta a existência de poucas crianças com o mesmo comportamento. “No condomínio é onde mais sofremos, aqui notamos claramente a exclusão do Pedro. Embora ele seja uma criança não verbal, ele consegue repetir o que marca o dia dele. E isso acontece com coisas que o deixaram magoado. Uma vez, ele tentou se enturmar com crianças e não conseguiu. Elas disseram “vai pra lá”. E ele repetiu essa expressão o dia inteiro. Por vezes, a distância é tamanha, que as crianças da mesma idade passam reto sem mesmo cumprimentar o menino”, diz a mãe.
O psquiatra de infância e adolescência e professor da Faculdade de Medicina da USP Guilherme Polanczyk diz que diante de situações assim é preciso afastar-se da ideia de que as pessoas autistas não são interessadas em relações ou no convívio social. Esse aspecto ocorre em alguns casos, mas não se trata, ele explica, de uma regra para todos no espectro.
“Existem muitas pessoas com autismo que têm esse interesse, buscam essas relações. Isso acontece principalmente na adolescência, quando é esperado que surjam questões relacionadas a pertencer a um grupo, identificar-se com outras pessoas e o até mesmo o namoro”, diz o especialista. “Sabemos que pessoas que têm autismo estão sob risco aumentado de desenvolver depressão. Esse sentimento de inadequação, de isolamento, é mais um fator de risco nesse cenário. Essa solidão é algo absolutamente real e as famílias ficam muito preocupadas”.
Pais vão às lágrimas
Algumas mães não contêm as lágrimas quando relatam em consultório que os filhos ficaram de fora de alguma festinha, viagem ou passeio de outras crianças. Os especialistas ainda vão além e explicam que esse aspecto não é só negativo para as pessoas com autismo. A presença de crianças neurodivergentes (como são chamadas as pessoas que têm um funcionamento cerebral diferente do esperado), diz a psicóloga Mayra Gaiato, do Instituto Singular, é benéfica também para quem não tem algum tipo de transtorno do comportamento. E deveria ser incentivada.
“O desafio, os estímulos diferentes, a dificuldade, tira a criança da zona de conforto e coloca numa zona de estimulação para o cérebro. Claro, é algo que dará mais trabalho (aos pais das crianças típicas), pois será preciso aprender mais sobre o comportamento daquele coleguinha, mas isso fará bem ao filho de quem se dispõe a fazer a atividade. E para a criança autista, nem é preciso mensurar o tamanho do benefício”, afirma.
Gaiato afirma que, diante da ansiedade causada por um episódio assim, os pais têm algumas ferramentas para aplacar a ansiedade de meninos e meninas. Em primeiro lugar, ela diz, é fundamental reconhecer que aquela situação (de exclusão ou solidão) é realmente desagradável e indesejada:
“Os pais podem validar o sentimento da criança. Os adultos tentam, por vezes, disfarçar, porque dói em nós também. Porém é muito importante dizer que notou a tristeza, a chateação e dizer que compreende que a criança gostaria que fosse diferente. A partir disso, mães e pais podem tentar organizar saídas com outras pessoas, outros amiguinhos, e informar que estão fazendo isso porque notaram que a criança não estava feliz”.
Heitor, por sua vez, dá uma dica para quem hesita em estender os convites às crianças neurodivergentes.
“Não importa se a pessoa tem autismo ou não, o que importa é se você acha ela legal. Se ela for gentil. O que importa não é o que ela é, mas o que ela faz”.
FONTE: Jornal O Globo