Quando ainda morava em São Paulo (SP), sua cidade natal, Gabriela D’Andrea, de 38 anos, já desconfiava de que poderia haver alguma questão com o seu filho, Vinícius, hoje com 9 anos. Ele tinha um atraso de fala e, embora a família tivesse abordado o assunto com os médicos que o menino se consultava na época, como o pediatra e a fonoaudióloga, todos diziam que dificilmente seria autismo, pelo modo com o qual o pequeno interagia e olhava. “Ele começou a falar com 3 anos e meio, mas como mudamos de país, foi pior. A fonoaudióloga já tinha me avisado que provavelmente haveria uma regressão – e foi o que aconteceu. Ele só voltou a falar, de fato, com 6 anos, mais ou menos”, contou a mãe, em entrevista à revista “Crescer”.
Gabriela e o marido, Renato, mudaram-se de São Paulo para Bournemouth, uma pequena cidade litorânea da Inglaterra, no fim de 2018. Vinícius foi para a escola nova, mas ficou deslocado. Além disso, ele tinha algumas questões sensoriais muito fortes. “A comida, por exemplo, sempre foi um problema”, relata a mãe. Mas ele seguia sem nenhum diagnóstico.
Ao visitar a família, uma agente de saúde perguntou se Vinícius era autista e Gabriela respondeu que não, mas relatou os sinais que o pequeno apresentava. “Foi quando aprendi o que era transtorno de processamento sensorial”, conta.
Para interpretar tudo o que acontece ao redor, o cérebro humano conta com a ajuda dos sentidos, como paladar, olfato, tato, visão e audição. Basicamente, o corpo “captura” as informações do ambiente, manda um sinal para o cérebro e o sistema nervoso central “decifra” essa mensagem, para saber como responder a cada tipo de estímulo. Quando a pessoa tem um transtorno de processamento sensorial, por algum motivo, acontece uma “falha” nesse processo e o cérebro não consegue interpretar os sinais do ambiente como deveria. O resultado é que essas pessoas se tornam sensíveis demais (ou de menos, em alguns casos) a certos tipos de estímulos. Inicialmente, este foi o diagnóstico de Vinícius.
Além disso, ele também foi diagnosticado com transtorno de linguagem, já que a dificuldade dele ia além do idioma – algo que o menino já sentia, mesmo no Brasil. O diagnóstico de autismo foi fechado mesmo quando Vini já tinha 8 anos. “Apesar das dificuldades de linguagem, ele sempre se comunicou de outras formas, o que acabou dificultando o diagnóstico mais precoce”, explica Gabriela.
Embora isso não tenha sido determinado ainda no Reino Unido, a mãe continuou passando Vinícius em consulta com uma psiquiatra no Brasil, que apontou que ele também tinha o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Por conta disso, o menino sempre apresentou muitas características contrárias ao autismo, o que dificultou o processo. “Apesar de o TDAH e o autismo coexistirem, os sinais são, muitas vezes, opostos. Muitos autistas preferem a rotina, enquanto um TDAH odeia. Vini tem mais características do TDAH em muitas questões”, aponta a fotógrafa.
Fazer o que está ao alcance – e um pouco mais
Enquanto toda essa investigação acontecia, junto com a adaptação depois da mudança de país, Gabriela tinha certeza de que precisava fazer algo. Não daria para esperar de braços cruzados. “Tenho um lado bem brasileiro de ir atrás, de lutar pelo meu filho, em vez de me acomodar com o que é apresentado. Isso também é muito frustrante, mas tento enxergar essa diferença como um ponto a favor para mim”, avalia.
Foi assim que apareceu a ideia do aplicativo. Gabriela, que também é mãe de Nicholas, de 5 anos, tentava ajudar Vini no que conseguia para que ele pudesse seguir a vida, fazer amigos, acompanhar a escola adequadamente… Porém, naquele momento, ela não fazia ideia de que o projeto iria tão longe – a ponto de sair do papel e ser premiado.
“A ideia surgiu de uma necessidade, quando percebi que o ensino tradicional não é adaptado para crianças neurodivergentes”, explica a mãe. “Eu sabia que existia um jeito melhor, comecei a procurar, mas, simplesmente, não encontrava nada que se encaixasse no que meu filho precisava. Foi então que percebi que eu poderia criar, já que ninguém mais faria isso”, aponta.
Em toda essa trajetória, Gabriela ficou pensando sobre de que forma poderia melhorar a vida do filho e, aos poucos, desenhou o The Monsters Club, uma plataforma com atividades voltadas especificamente para crianças atípicas. “Mas eu tinha mil coisas acontecendo e deixei guardado. Até que soube do prêmio, da Universidade de Bournemouth, com apoio da administração local, e decidi inscrever o projeto, sem nenhuma pretensão”, explica.
Ela não achou que teria chances de ganhar. “Compareci à premiação porque queria sair de casa, ver pessoas… Foi um choque quando chamaram o The Monsters Club. A partir dali, não olhei mais para trás”, afirma. O projeto teria que ganhar vida. “Eu sabia que a ideia beneficiaria muitas pessoas, além do Vini, e isso era maior do que os obstáculos que eu tinha certeza de que encontraria”, acrescenta. Mãos à obra!
Como funciona o The Monsters Club?
Em fase de desenvolvimento, o aplicativo The Monsters Club oferecerá às crianças uma lição por dia, de curta duração – com cerca de 15 minutos – além dos exercícios neurológicos que os ajudam a se regular, aumentam a concentração e reforçam as chances de adesão ao conteúdo, tudo feito com a orientação e o respaldo de especialistas, como neuropediatras, terapeutas e pedagogos. A expectativa, segundo Gabriela, é de que em um ano eles possam começar a receber os primeiros alunos.
Gabriela trabalha junto com o irmão no projeto e, agora, a dupla organiza a parte burocrática e tenta arrecadar fundos para os próximos passos. Com o prêmio, eles receberam um valor da prefeitura. “Foi um empurrão, mas temos a consciência de que se trata de um projeto de alto custo e, por isso, nossos primeiros passos foram estabelecer maneiras de fazer parcerias e arrecadar fundos”, conta a mãe. Uma das iniciativas foi criar uma loja com peças, como camisetas e moletons, que dão visibilidade à importância da inclusão e ajudam na divulgação da marca. Eles também têm uma página de financiamento coletivo no GoFundMe. Quem doa recebe um monstrinho personalizado como agradecimento.
Sobre o fato de seu projeto ter ganhado o prêmio e ter recebido estímulo para ir adiante, Gabriela se sente grata e aliviada. “Depois de muitos anos tendo que brigar pelos direitos do meu filho, esse sentimento é bem acolhedor”, descreve. “Espero, em breve, poder apresentar o The Monsters Club para todas essas pessoas que acreditaram e apostaram em nós. Sei que o resultado será revolucionário para famílias como a minha e para todos nós, como sociedade, que ainda temos muito o que crescer”, afirma.
“O fato de ser mãe de uma criança autista, com TDAH e transtorno do desenvolvimento da linguagem me colocou em uma posição que me permitiu enxergar o mundo por uma perspectiva nova, que, até então, eu desconhecia completamente”, afirma. “Sempre digo que sou uma pessoa muito melhor depois do Vini. Ele abriu os meus olhos para um mundo completamente novo – o que só prova quão longe estamos de sermos uma sociedade inclusiva. “Algumas pessoas me perguntam se eu optaria por ter meu filho sem o autismo, se eu pudesse escolher. A resposta é não. Ele é autista e isso faz parte dele, mas não o define. Não há nada que eu mudaria nele, mas há muita coisa que nós, como sociedade, temos que mudar”, completa.
FONTE: https://revistacrescer.globo.com/maes-e-pais/comportamento/noticia/2024/11/mae-brasileira-desenvolve-aplicativo-para-criancas-com-autismo-e-ganha-premio-na-inglaterra.ghtml