A primeira vez que o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) apareceu no Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), a “bíblia da psiquiatria”, foi no final da década de 1980. De lá para cá, enquanto o mundo passava por transformações econômicas, políticas e sociais, o número de casos de TDAH explodiu. Em um período de 20 anos, a prevalência subiu de 6,1% (entre 1997 e 1998) para 10,2% (entre 2015 e 2016), segundo pesquisas.
Essa tendência levantou uma série de dúvidas sobre as possíveis razões por trás desse crescimento. Alguns grupos inclusive começaram a questionar a existência da condição. Frases como a “doença é modinha”, “não existia na minha época” ou “é produto inventado pela indústria farmacêutica para vender remédios” ganharam espaço no noticiário, nas redes sociais e até em livros vendidos em grandes plataformas de e-commerce.
Mas esse papo de “existe ou não existe” serve apenas para clickbait – ou seja, para atrair cliques –, segundo o dr. Luis Augusto Rohde, professor do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O TDAH é um transtorno neurobiológico, com base genética, e o aumento de casos não é um mero “constructo”, as fruto de uma maior conscientização e compreensão da condição.
À medida que a sociedade se tornou mais informada sobre as características do TDAH e seus sintomas, fala o médico, mais indivíduos passaram a ser identificados. Além disso, mudanças nas práticas de diagnóstico, incluindo a implementação de critérios mais abrangentes, também contribuíram para a melhor caracterização do transtorno nas pessoas.
“Em resumo, o aumento é devido a fatores como maior reconhecimento da doença por parte de grupos de diferentes áreas da saúde, crescimento no número de diagnósticos, especialmente em meninas e mulheres, e aumento da prevalência em países como Estados Unidos”, diz o dr. Rohde, que também é coordenador-geral do Programa de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) do Hospital das Clínicas de Porto Alegre.
Diagnósticos de TDAH
Ao longo do tempo, os critérios para o diagnóstico para o TDAH foram revisados e refinados para refletir uma compreensão mais aprofundada da condição. No DSM-V, lançado em 2013, um dos pontos modificados foi a idade de início dos sintomas, o que também pode ter colaborado com o aumento dos diagnósticos.
“Antes, os dados sobre a doença eram considerados se ocorressem até os seis anos de idade, mas isso mudou nos último consenso, e hoje é até os 12 anos de idade. Por que isso mudou? Porque as pessoas adultas chegavam ao consultório para falar sobre seu passado e não tinham memória até os 6 anos, o que dificultava o fechamento do diagnóstico”, explica a dra. Ana Chrystina de Souza Crippa, professora de neurologia na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro da equipe de neurologia infantil do Hospital de Clínicas (HC) da mesma instituição.
As práticas diagnósticas agora são multidimensionais e consideram não apenas os sintomas comportamentais, mas também fatores sociais, familiares e de âmbito escolar. Também foram desenvolvidas e validadas diversas ferramentas de avaliação padronizadas para auxiliar no diagnóstico do TDAH, incluindo questionários de autorrelato, escalas de avaliação comportamental e testes neuropsicológicos.
A dra. Ana conta que a comunidade científica passou ainda a reconhecer a alta taxa de comorbidade entre o TDAH e outros transtornos, como ansiedade, depressão, transtorno do espectro autista e transtorno de aprendizagem. “Você pode ter outro diagnóstico, mas os sintomas clínicos são de TDAH. Seria mais ou menos assim: eu tenho uma amidalite bacteriana, mas estou com febre. Então a febre seria o TDAH e a amidalite bacteriana pode ser um quadro de ansiedade que tem por trás e a criança manifesta dessa forma.”
Questões de gênero
Existem três principais tipos de TDAH, segundo a literatura médica: o predominantemente desatento, o predominantemente hiperativo e impulsivo e, por fim, o combinado, que apresenta características de ambos. Eles podem se manifestar de formas diferentes nos dois sexos, mas meninos normalmente apresentam sintomas de hiperatividade e impulsividade, enquanto as meninas tendem a exibir mais sinais de desatenção.
Estudos sugerem que, por causa das diferenças de sintomas apresentadas pelos diferentes gêneros, os garotos têm cinco vezes mais chance de serem diagnosticados com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade do que as garotas, além de três a oito vezes mais possibilidade de receberem o tratamento adequado.
Mas, com o avanço do entendimento da condição, os profissionais começaram a perceber também os sintomas das meninas. A correção na proporcionalidade entre os sexos, no entanto, só ocorre na fase adulta. Segundo a Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA), hoje a proporção de mulheres e homens com TDAH é de um para um. Acredita-se que isso ocorra porque pessoas do gênero feminino tendem a procurar mais tratamento médico depois da adolescência do que aquelas do gênero masculino.
Sociedade
Além do gênero, a sociedade tem presenciado um aumento notável no número de adultos diagnosticados com TDAH. Há diversos estudos indicando a tendência. Um deles, publicado no “JAMA Open Network”, acompanhou 5 milhões de homens e mulheres e 800 mil crianças entre 2007 e 2016. No período, a prevalência constatada de TDAH foi maior em crianças. No entanto, a taxa de casos entre os pequenos aumentou 26% em dez anos, enquanto nos adultos subiu 123%, especialmente entre mulheres.
Parte da alta se deve ao aumento de diagnósticos na infância. Estudos demonstraram que o TDAH persiste na vida adulta em torno de 60% a 70% dos casos identificados quando a pessoa é criança. Há também questões de mudanças sociais e culturais, segundo a dra. Ana Chrystina. As expectativas sociais e culturais sobre o comportamento feminino mascaravam os sintomas de TDAH em mulheres, disse. Antigamente, a ideia dominante na sociedade era de que meninas e mulheres deveriam ser mais calmas, organizadas e focadas, o que poderia levar a uma menor suspeita de TDAH, mesmo quando os sintomas estavam presentes.
“Hoje, a gente tem uma mulher mais dinâmica, que saiu de casa para trabalhar. Além disso, o ritmo das famílias é diferente”, falou.
Popularização
Além de parte de diagnóstico, pessoas com a condição começaram a falar publicamente sobre o tema, como a cantora, compositora e atriz Lily Allen, em abril do ano passado, o que encoraja outros indivíduos a procurarem ajuda, além de popularizar o tema. No mês em que a artista britânica revelou seu diagnóstico, as buscas pela sigla “TDAH” alcançaram o pico histórico no Google, segundo o Google Trends, ferramenta da gigante da tecnologia que mostra os termos mais populares procurados em um passado recente. Os vídeos no TikTok com a sigla “ADAH” (do nome do transtorno em inglês) já foram vistos quase 36 bilhões de vezes.
Mas todo esse excesso de conteúdo levanta questionamentos sobre a influência de tanto burburinho no uso indevido de medicamentos para TDAH, tanto por pessoas sem o diagnóstico como para outros fins. Remédios para a doença, como Adderall, cuja venda é proibida no Brasil, e a ritalina, por exemplo, são usados de forma imprópria por estudantes, concurseiros e outros grupos porque aumentam a concentração e a disposição para horas de estudo. No ano passado, houve falta de medicamento Adderall por pelo menos seis meses nos Estados Unidos.
Apesar de realmente existirem maus usos, segundo o dr. Rohde, esse é um problema pontual, e o grande problema atualmente não é a utilização abusiva, mas sim a subnotificação. Em uma meta-análise publicada em 2021, ele e outros pesquisadores constataram que para cada indivíduo que usa medicação sem diagnóstico formal de TDAH nos Estados Unidos, há três com diagnóstico formal que poderiam se beneficiar da medicação, mas não a recebem. Situação semelhante é vista no Brasil, explicou o médico, com base em pesquisas feitas em em Porto Alegre e em Canoas, no Rio Grande do Sul.
“Em termos de saúde pública no Brasil, tu vais encontrar a questão de subdiagnóstico e subtratamento, mas não quer dizer que lá na Faria Lima [avenida que simboliza o centro econômico de São Paulo], ou em escolas de classe econômica alta, não haja pessoas usando de forma inadequada a medicação”, disse.
Como lidar
Os impactos do aumento do TDAH são multifacetados e afetam sociedade, família e educação. No âmbito da escola, crianças com a condição podem enfrentar dificuldades acadêmicas, desafios de comportamento e problemas de relacionamento com colegas e professores. Nos adultos, a dependência de substâncias como drogas e álcool é uma comorbidade bastante frequente em pessoas com a condição.
Para os especialistas ouvidos para esta reportagem, adultos que reconheçam sintomas ou pais que os percebam nos filhos devem procurar auxílio profissional. O tratamento normalmente une psicoterapia, psicopedagogia (no caso de estudantes) e medicamentos. No caso dos jovens e adultos, há também, segundo a dra. Ana Crystina, treinos cognitivos. “Um exemplo prático é o uso de smartphones para lembrar de datas e horários para tomar remédio.”
Fonte: Portal Drauzio Varella (https://drauziovarella.uol.com.br/psiquiatria/o-que-esta-por-tras-da-explosao-de-casos-de-tdah-no-brasil-e-no-mundo/)