Embora a prática forense sugira que a prova oral é o meio probatório mais utilizado no âmbito judicial, paradoxalmente não existe no Direito positivo algo como uma cadeia de custódia neste campo, ao contrário do que se observa com outros meios probatórios. Essa situação se agrava especialmente devido à existência de numerosos fatores capazes de influenciar no processo de captação da realidade, consolidação das memórias, armazenamento da informação e lembrança dos eventos.
Um dos problemas que pode ocorrer no momento da captação da realidade é chamado interrupção do encadeamento adequado dos eventos. Esse fenômeno verifica-se quando o processo de percepção da realidade sofre alguma influência externa ou interna que obstaculiza a inserção da informação de maneira adequada, prejudicando, como consequência, seu armazenamento e posterior recuperação na ocasião da lembrança.
Um dos fatores exógenos que pode terminar interrompendo o encadeamento adequado dos fatos está relacionado ao uso de drogas lícitas ou ilícitas. Tomemos como exemplo a maconha. Seu uso pode comprometer as funções executivas e a plasticidade neural e, como consequência, gerar uma captação da realidade fragmentada. De fato, os usuários habituais dessa substância geralmente sofrem uma condição denominada “embotamento cognitivo”, caracterizado pela diminuição da velocidade do processamento cognitivo de novas informações. Isso se explica porque os neurotransmissores envolvidos na transmissão de sinais no cérebro, como o glutamato e a dopamina, são alterados, levando a uma redução na eficiência das sinapses e, em consequência, a uma menor capacidade de atenção, memória e aprendizagem.
Prejuízo para o processo
Nesse contexto, embora o sujeito esteja vivenciando a realidade, não a captará por completo, mas sim por partes, não sendo capaz de reproduzir o que viu, ouviu ou percebeu de maneira vívida ou clara, seja nos aspectos centrais, laterais ou periféricos dos eventos. Se o juiz perguntar o que ocorreu em determinada situação ou circunstância, deverá esperar de seu interlocutor dificuldades de compreensão, respostas lentas, difusas ou desconectadas. Se o encadeamento factual se dá dessa forma, aumentará a credibilidade da condição de usuário habitual da droga em questão, o que sem dúvida acarretará consequências legais mais benignas. Por outro lado, se a resposta muda de perfil, revelando-se ágil, sagaz e perspicaz, provavelmente o interlocutor não se encontrará na condição de usuário, mas em outra diferente, como a de traficante, o que implicará consequências legais mais severas.
O álcool, para mencionar apenas essas duas substâncias como fatores exógenos, também dificulta a captação da realidade, mas por outro motivo. Ao afetar o hipocampo, especialmente o giro denteado, o álcool provoca dificuldades no processo de consolidação das memórias recentes, prejudicando, por conseguinte, o armazenamento e a recuperação dos eventos vividos. Além disso, o consumo excessivo habitual e reiterado dessa substância pode inclusive gerar a conhecida Síndrome de Korsakoff, no qual o hipocampo está tão deteriorado que já não é possível a fixação de novas memórias, permanecendo apenas as antigas. Nesse caso, embora a realidade seja vivida, não será captada, consolidada nem lembrada.
TDAH também gera implicações
Como fator endógeno capaz de prejudicar a recepção dos eventos, o Transtorno por Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é significativo. As pessoas com TDAH geralmente têm dificuldades para focar em um ponto específico da realidade, alternando sua atenção entre vários pontos do mesmo ambiente ou evento. Curiosamente, devido à velocidade de funcionamento do mecanismo de percepção cerebral, os indivíduos com TDAH tendem a perceber mais detalhes, tanto centrais como periféricos, do que aqueles sem o transtorno.
No entanto, enfrentam problemas no armazenamento da informação captada devido ao volume de dados processados e, consequentemente, na recuperação dessa informação. Por conseguinte, se o testemunho é recolhido imediatamente após o evento, o indivíduo com TDAH poderá fornecer numerosos detalhes que talvez nem sequer fossem percebidos por neurotípicos. Por outro lado, se o testemunho é recolhido após algum tempo, a resposta esperada de alguém nessa condição de neuroatipicidade será a falta de lembrança dos detalhes percebidos anteriormente.
Como fator exógeno também pode ser mencionado o fenômeno das falsas memórias, caracterizadas pela existência de uma ou mais informações errôneas ou imprecisas que acabam influenciando na recordação do conjunto de fatos. Não se trata aqui da intenção frontal e deliberada de mentir ou omitir, mas da inserção autoinfligida ou externa de informação ou traços informacionais que perturbam a recordação adequada do evento presenciado.
Além da falsa memória implantada, a conformidade da memória representa outro desafio significativo para a credibilidade das lembranças. Esse fenômeno destaca-se principalmente pela sua ocorrência pós-evento, ou seja, embora a captação, consolidação e armazenamento da memória ocorram adequadamente, a fase de recuperação pode ser comprometida devido a estímulos externos ou internos.
A diferença fundamental entre os processos de interrupção do encadeamento e a conformidade da memória reside quando ocorrem. As interrupções no encadeamento afetam a fase inicial de captação da realidade, influenciando diretamente em todas as etapas subsequentes da memória. Em contraste, a conformidade da memória ocorre depois do evento, podendo distorcer uma lembrança previamente bem armazenada através da influência de informações externas ou revisões internas do evento.
Estudos demonstram que a conformidade da memória pode ocorrer quando as pessoas discutem um evento depois de tê-lo presenciado, levando-as a formar lembranças que se alinham mais com a informação compartilhada durante a discussão do que com o que realmente foi observado. Esse efeito é especialmente relevante em contextos legais nos quais a precisão das lembranças é crucial. As pesquisas revelam que intervenções como a sugestão ou a pressão social podem levar os indivíduos a adotar detalhes errôneos em suas memórias, mesmo se originalmente armazenaram o evento de maneira precisa.
Alteração da memória
Essa dinâmica destaca a importância de compreender como os fatores externos e internos podem alterar a memória, não só para melhorar nosso entendimento sobre a psicologia da memória, mas também para incrementar as práticas judiciais e investigativas, assegurando uma maior justiça e precisão no tratamento de testemunhos e evidências baseadas em lembranças.
Em conclusão, a ausência de uma cadeia de custódia na prova oral combinada com os múltiplos fatores que podem influenciar na percepção e na memória apresenta um desafio significativo para a credibilidade dos testemunhos no âmbito judicial. Fatores exógenos como o uso de drogas e álcool e endógenos como o TDAH podem alterar a captação, consolidação e recuperação dos eventos, afetando a precisão e confiabilidade das lembranças. Compreender e mitigar esses efeitos é essencial para assegurar a justiça e a exatidão na avaliação de testemunhos e evidências baseadas na memória.
FONTE: https://www.conjur.com.br/2024-ago-24/como-as-drogas-e-o-tdah-influenciam-a-credibilidade-dos-testemunhos-em-julgamento/