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Parafraseando um conhecido reality show, Hellen Dal Magro, 38 anos, brinca que sua família mora na Casa dos Autistas. É com bom humor que a caxiense conta como é ter dois dos seus três filhos, Lorenzo, 9, e Maicol, 20, diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista (TEA), sendo que o terceiro, Johnny Derick, 18, recebeu recentemente um laudo positivo, que aguarda validação de um neurologista.

A detecção, contudo, não foi cronológica. O caçula, Lorenzo, foi o primeiro a receber o diagnóstico de autismo de nível 2 (moderado), quando tinha três anos de idade. Maicol, ao ter detectado o autismo de nível 1 (leve) já estava com 14 anos e a mãe sequer suspeitava que seu primogênito pudesse ser, também autista.

“O Lorenzo apresentava todos os sintomas mais associados ao autismo: não falava, não olhava nos olhos, não gostava de brinquedos. O Maicol, por sua vez, passava a impressão apenas de ter uma personalidade forte, mas sempre se destacou pela inteligência acima da média. Aos 14 anos ele desenvolveu uma depressão profunda, pela dificuldade em socializar e ser aceito, e só então foi descoberto que ele era autista” , conta Hellen, que integra a diretoria da Associação de Pais e Amigos do Autista, a AMA Caxias do Sul.

O fato do caçula ter sido diagnosticado ainda na primeira infância, enquanto o mais velho conviveu com o transtorno por toda a infância e parte da adolescência sem saber, fez uma diferença significativa na vida de ambos:

” Fui mãe pela primeira vez muito jovem, não imaginava que por trás do comportamento do meu filho (Maicol) pudesse ter um quadro de autismo. Ele era uma criança muito sozinha, que não era aceito na escola pelo fato de sempre ter resposta pra tudo. Quando o vi depressivo, foi devastador. Hoje ele finalmente tem o tratamento correto, paga a própria terapia, trabalha e estuda. O Lorenzo, por sua vez, só está tão bem porque as intervenções foram feitas rapidamente e desde os três anos ele conta com acompanhamento profissional. Tivemos de fazer muitos empréstimos e ainda não nos recuperamos financeiramente, mas valeu a pena”.

Diagnósticos evoluíram
Os irmãos moradores do bairro Reolon são prova de que é possível levar uma vida feliz e produtiva com o diagnóstico do TEA. Lorenzo adora postar vídeos no Instagram sobre videogames e frequenta práticas inclusivas, como kickboxing e natação; Maicol cursa graduação em Análise de Sistemas e faz estágio em uma empresa neste ramo; e Johnny faz estágio em banco e também na prefeitura, além de ter começado recentemente a cursar Economia.

Casos como o da família Dal Magro ilustram, também, a importância da busca pelo diagnóstico correto para o TEA, especialmente num momento em que uma “epidemia de autismo” com cautela por especialistas: de acordo com o CDC (Centro de Controle de Doenças, em tradução livre do inglês), uma em cada 36 crianças norte-americanas tem autismo, sendo que em 2000 este índice era de uma em cada 150 crianças. Não há uma estatística para o Brasil, mas os números do CDC são a principal referência internacional no assunto.

“Como uma maior conscientização e compreensão sobre os sinais e sintomas do autismo, os critérios para diagnósticos também evoluíram bastante, incluindo pessoas que antes eram negligenciadas. Não creio que houve um aumento no autismo, mas sim um aumento de diagnósticos devido à capacitação dos profissionais e às possibilidades de elucidação diagnóstica de forma mais precisa e precoce”, destaca a fonoaudióloga Alícia Rodrigues, que atua na clínica Neuro Espaço, em Caxias.

Pelo fato de não haver um exame específico para detectar o autismo, o diagnóstico é realizado por observação clínica multidisciplinar. Na mesma medida em que o TEA se tornou um tema mais presente na sociedade, contudo, houve também uma enxurrada de informações incorretas sendo divulgadas na internet, além de questionários e testes rápidos que, ao invés de informar, muitas vezes desinformam.

“Já recebemos famílias que “jogaram no google” características de seu filho e nos procuraram equivocados sobre o diagnóstico. O espectro do autismo é grande, todos nós vamos nos identificar com alguma característica. As famílias devem procurar uma avaliação neuropsicológica, que envolva uma equipe multiprofissional. Essa avaliação é feita por profissionais de diversas áreas (neuropsicóloga, psicóloga, psicopedagoga, fonoaudióloga…), e desta forma não só é fechado o diagnóstico, se for o caso, como a família é orientada de forma correta sobre o TEA bem como as intervenções necessárias para cada caso”, acrescenta Alícia.

A profissional acrescenta ainda que, também para pessoas adultas que queiram fazer uma avaliação quanto a um possível quadro de TEA, o melhor caminho é procurar o atendimento especializado:

“A melhor forma sempre é a avaliação neuropsicológica com um profissional especialista. A avaliação é capaz de elucidar quanto às características do TEA que podem estar associadas a outros fatores, e assim teremos um diagnóstico mais consistente ou a exclusão dele”.

Psicoeducação
Por quase oito anos, a psicóloga caxiense Jussara Castilhos atuou no serviço público em prefeituras do interior. No Sistema Único de Saúde identificou como entraves para o melhor atendimento a autistas a falta de especialistas, uma vez que muitos profissionais ingressam por meio de concursos públicos generalistas; a alta rotatividade de profissionais, que por vezes leva a longos períodos em que os pacientes ficam sem acompanhamento, e a inexistência de programas de educação permanente disponibilizados às equipes.

“O diagnóstico do TEA, e de outros transtornos globais do desenvolvimento, devem ser fechados somente por neuropediatras ou psiquiatra infantil. As equipes multiprofissionais, incluindo psicólogos, podem levantar a hipótese através de observações e avaliações do desenvolvimento, auxiliando nesse processo. Além disso, percebe-se que, apesar de já ser direito adquirido, a oferta de atendimento educacional especializado, incluindo suporte de Acompanhante Terapêutico (AT) nas escolas, o que se encontra com frequência, é uma realidade que não condiz com o preconizado. Condições como esta podem acabar neutralizando tentativas de estabelecer um programa de estimulação eficaz, por exemplo”, destaca.

A psicóloga aponta ainda, como desafio para que a sociedade possa avançar na detecção e intervenção mais eficaz em casos de autismo, aquilo que chama de psicoeducação. Trata-se de uma abordagem essencial em tempos de busca por respostas rápidas, autodiagnósticos e exposição sem filtros a recursos tecnológicos.

“Essa tem sido uma preocupação dos profissionais: o fato de pessoas chegarem para atendimento descrevendo o autodiagnóstico e inclusive o tratamento que acreditam ser o mais indicado, segundo suas pesquisas na internet. Ou, então, se comparando a pessoas conhecidas e, supondo que o mesmo tratamento feito por elas, poderá dar resultados iguais para si. Acolher esse sujeito, fornecer explicações claras de forma que ele compreenda a informação e sua aplicação nos diferentes casos, é fundamental em qualquer processo terapêutico. São etapas básicas para um diagnóstico individualizado e seguro. O que a comunicação unilateral da internet não consegue garantir”.

Sinais em bebês

Criado na França no final dos anos 1990, o Preaut é um protocolo para identificação de risco de autismo em bebês, a fim de alcançar melhores resultados nesta fase da vida em que a criança ainda está em pleno desenvolvimento. Em Caxias do Sul, a psicóloga e psicanalista Margareth Kuhn Martta é uma das pioneiras no trabalho com esta abordagem, que é tanto clínica quanto voltada a capacitar profissionais da “linha de frente” da educação e da saúde infantil. Margareth destaca que a detecção a tempo do TEA, aliada à intervenção adequada, pode mudar o destino de uma criança.

“Hoje a ciência já tem muito mais clareza quanto à plasticidade cerebral e a epigenética, que considera o ambiente como fator que ajuda a constituir os circuitos neurais. Muitas são as causas possíveis: lutos não feitos, até mesmo transgeracionais, intercorrências no parto, gestação e puerpério, que pode levar a criança a um quadro melancólico que depois pode ser diagnosticado como autismo. Independente da causa (do TEA), se for genética ou não, é fundamental neste contexto, incluir a família. Quando a criança nasce, ela precisa aprender a habitar o seu corpo e o mundo em que ela vive. Essa mediação é feita por quem exerce a função maternal de cuidado. Existem sinais que podem alertar para sofrimento psíquico, como evitação do olhar, doenças orgânicas de repetição, crianças que sentem muitas dores (refluxo patológico ou cólicas excessivas), dificuldades no sono, na alimentação. Outro sinal bastante importante é a criança ter dificuldade para convocar o outro nas trocas sociais. Uma criança que não balbucia e não convoca o outro para falar, evidencia riscos para um quadro de sofrimento ou risco”, explica a psicanalista.

Margareth ressalta que uma avaliação diagnóstica, necessariamente, deve considerar a singularidade de cada pessoa, seja ela de qualquer idade. Por isso, aponta que diagnósticos realizados por checklist, ou questionários, podem até oferecer respostas mais rápidas, mas não devem dispensar a avaliação clínica.

“É importante o conhecimento de como se constitui o psiquismo, de como a criança desenvolve as suas habilidades. Não se pode tratar uma criança apenas com base nos sintomas que ela apresenta, desconsiderando a singularidade de cada um e contexto em que ela vive. É o trabalho com a criança, juntamente com as pessoas que se ocupam dela, que nos darão a direção de como intervir a partir do seu sofrimento. É isso que um protocolo fechado pode não considerar ao abordar diferentes sujeitos sob os mesmos critérios”.

Além do atendimento clínico, outro foco de atuação de Margareth Martta é na capacitação de profissionais da linha de frente, para identificar fatores de risco de TEA em bebês. Isso envolve a sensibilização de gestores quanto à importância de preparar suas equipes para realizar este trabalho preventivo.

“Nossa grande proposta, do Preaut, é fazer capacitações para que pediatras, enfermeiras, professores, fonoaudiólogos, psicólogos, psicomotricistas, neurologistas possam ter condições de perceber quando a criança está em sofrimento psíquico, tanto em planos de saúde quanto em saúde pública. Esta é a saída. Porque muitas crianças chegam ao consultório apresentando sintomas quando já estão com dois anos e meio ou três anos, pois antes disso, dificilmente chega. E hoje a gente sabe que os bebês desde muito cedo, já anunciam sinais que estão em sofrimento psíquico, como exemplo, os movimentos gerais que são possíveis de identificar ainda nas ecografias. O desenvolvimento neuromotor também nos dá indicações bastante precisas sobre a condição do bebê”.

Pesquisa aplicada

Em 2018, a Escola de Estudos Psicanalíticos, da qual Margareth faz parte, iniciou uma pesquisa de intervenção nas escolinhas para detectar precocemente e intervir junto às escolas de educação infantil, a qual ainda acontece. Em 2019, uma capacitação para todos os educadores da rede ofereceu recursos para que pudessem perceber a tempo indicadores de sofrimento psíquico. Chegou a 350 educadores que puderam participar da capacitação. A parceria entre a Escola de Estudos Psicanalíticos e a Secretaria Municipal de Educação é mantida atualmente em três escolas de educação infantil do município que contam com esse trabalho. Neste ano, a equipe da Escola de Estudos Psicanalíticos está iniciando uma pesquisa semelhante nas escolas municipais de Porto Alegre.

O que é o TEA?
O Transtorno do Espectro Autista, ou autismo, é uma condição do neurodesenvolvimento na qual o indivíduo apresenta dificuldades na comunicação social e comportamentos restritivos com movimentos estereotipados. Ainda não se sabe exatamente as causas do TEA, mas já se sabe que em alguns casos a genética ou a hereditariedade são as causadoras e, em outros casos, questões do ambiente em que a criança vive ou é exposta.

Quais os sintomas?
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 5a Edição (DSM 5, 2014) traz como principais sintomas os déficits persistentes na comunicação e interação social em múltiplos contextos, padrões restritivos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades, e enfatiza que os sintomas devem estar presentes precocemente e causar prejuízo significativo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas.

Como é feito o diagnóstico?
O diagnóstico deve ser feito por um profissional adequado e é muito importante que, aos primeiros sinais, se possa iniciar um tratamento para as principais dificuldades, mesmo sem o diagnóstico, já que quando antes a intervenção for feita, mais chances da criança desenvolver habilidades que talvez não desenvolvesse com uma intervenção tardia.

Fonte: Gaúcha ZH (https://gauchazh.clicrbs.com.br/pioneiro/cultura-e-lazer/noticia/2024/04/de-bem-com-o-tea-como-buscar-o-diagnostico-correto-para-o-autismo-pode-transformar-vidas-clun264f9020g0157wcyvxari.html)

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